segunda-feira, janeiro 03, 2022

Laranja Mecânica
— na turbulência dos anos 70

Alex, aliás, Malcolm McDowell

Encenando formas extremadas de violência, Laranja Mecânica integra um capítulo da história dos filmes em que se questionavam as heranças do cinema clássico — este texto foi publicado no Diário do Notícias (18 dezembro), por ocasião dos 50 anos do lançamento do filme de Stanley Kubrick.

Uma “bagunça ideológica”? Foi com essa curiosa expressão que o crítico americano Roger Ebert (1942-2013) classificou Laranja Mecânica num artigo publicado em fevereiro de 1972. Mais do que isso, chamou-lhe “fantasia paranóica de direita” e acusou o filme de Stanley Kubrick de se “mascarar” de um aviso à maneira de George Orwell.
De tão directo e contundente, o texto de Ebert passou a fazer parte da própria história mitológica do filme, como se nele se projectasse o desconforto que Laranja Mecânica transportava e, de alguma maneira, multiplicava. A questão não tem tanto a ver com o facto de o filme ser “bom” para uns e “mau” para outros — coisa que, em boa verdade, é o efeito habitual da maior parte dos filmes. Acontece que a adaptação do romance, igualmente polémico, de Anthony Burgess, conseguia (e consegue) confrontar o seu espectador com uma interrogação perturbante: afinal, o que distingue a violência de Alex das formas de controle do Estado que o quer “educar”?
Pode dizer-se, aliás, que as interpretações que Laranja Mecânica tem suscitado ao longo de meio século sendo, certamente, reveladoras da riqueza ambivalente da sua narrativa, são também um espelho bizarro de temas e fantasmas que cada época vai gerando — poder simbólico que, naturalmente, também distingue a escrita de Burgess.
Lembremos apenas que o filme surgiu numa conjuntura em que a representação da violência em cinema estava longe de ser uma banal peripécia mediática. 1971 é, aliás, um ano em que encontramos pelo menos mais dois filmes que expõem formas muito particulares de violência: The French Connection/Os Incorruptíveis contra a Droga, sobre o combate a uma rede de traficantes com base no sul de França, e Dirty Harry/A Fúria da Razão, primeiro de uma série de títulos centrados na personagem de um inspector da polícia de São Francisco interpretado por Clint Eastwood.
A turbulência de tais filmes constitui uma herança perversa das ilusões libertárias dos anos 60. Um dos seus capítulos fundamentais está nos “westerns” que se fizeram a partir de A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah, expondo uma violência crua, historicamente iniludível, que muitos filmes anteriores do mesmo género transfiguravam em epopeia de redenção. Descendente directo de tal processo é o filme que Peckinpah assinou também em 1971, Cães de Palha, com Dustin Hoffman, dir-se-ia um “western” em cenários urbanos daquele tempo.
Num certo sentido, pode mesmo dizer-se que, ao interpretar Alex, Malcolm McDowell transportava a energia paradoxal do filme que, em 1968, o revelara: Se… (o célebre If…), de Lindsay Anderson, alegoria política construída a partir da revolta dos estudantes de um colégio privado britânico. Porque, além do mais, convém não esquecer que, desde a rodagem da sua Lolita (1962), Kubrick passou a viver e filmar na Grã-Bretanha — faleceu na sua propriedade de Childwickbury Manor, perto de Londres, a 7 de março de 1999, contava 70 anos.
Rodagem de Laranja Mecânica:
Kubrick surge, ele próprio, como operador de câmara