terça-feira, janeiro 04, 2022

Estatuto dos Profissionais
da Área da Cultura
— de que falamos
quando falamos de cultura?

A Insustentável Leveza do Ser (1988):
escrito por Kundera, filmado por Philip Kaufman

A cultura não se reduz a uma acumulação de “eventos”: as suas dinâmicas envolvem todas as formas da arte de viver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 dezembro), com o título 'A sindicalização da cultura'.

O Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, promulgado a 13 de novembro (em vigor a partir de 1 de janeiro de 2022), ficará como um facto importante nas políticas culturais do ano que está a terminar. Como está escrito na apresentação oficial do documento: “A partir de agora, pela primeira vez em Portugal, todos os profissionais da área da Cultura têm aquilo pelo qual tanto se lutou durante várias décadas: um Estatuto que combate a precariedade e os falsos recibos verdes no setor e que aumenta a proteção social em todas as eventualidades, como o desemprego, a doença, a parentalidade, as doenças profissionais, entre outros.”
Sou dos que pensam que tal documento representa (também) um passo mais para o enquistamento cultural do nosso país. O que não exclui que, como qualquer cidadão minimamente atento aos problemas endémicos do chamado sector cultural, seja sensível ao facto de o documento poder contribuir para pôr em prática tudo aquilo que a citação anterior sublinha: a defesa profissional dos respectivos trabalhadores e uma assistência efectiva em situações de maior fragilidade de cada um desses trabalhadores.
Não é disso que falo. Falo, isso sim, de um efeito prolongado que o documento, no seu impensado filosófico, se limita a confirmar e consolidar. A saber: a definição da cultura como um espaço meramente sindical, não como matéria abrangente (“a” matéria abrangente) de todas as formas de vida social.
Que se passa, então? Uma instrumentalização piedosa da noção de cultura que não resulta deste documento nem é exclusivo do actual governo — tal instrumentalização decorre de um paupérrimo discurso cultural em que quase toda a classe política se reconhece com a mesma serena indiferença. Triunfou a noção segundo a qual a cultura não passa de uma soma organizada de “manifestações” (culturais, precisamente), assim libertando todos os outros sectores da sociedade de qualquer responsabilidade cultural.
Em muitas formas do nosso viver e pensar, foi sendo reduzida a zero uma perspectiva crítica, exigente e ágil da cultura que, na minha experiência profissional, me leva a recordar a visão posta em prática por Vicente Jorge Silva (1945-2020) no período em que trabalhei sob a sua orientação editorial. Que decorre de tal visão? Primeiro, que a cultura não se esgota numa agenda de “eventos” ou numa soma linear de “espectáculos”; segundo, que a sua dinâmica envolve todos os valores que uma sociedade vai gerando através do mapa das suas relações. Lembrava ele, por exemplo, que era importante discutir culturalmente a política e pensar culturalmente a economia.
Nesta perspectiva, a cultura não é, de modo algum, a emanação de um “bem” abstracto que, na sua virgindade institucional, nos vai “cultivando”. A cultura é mesmo um território de guerra (conceptual e de pensamento, entenda-se) que, por definição, não se aquieta. A sua inquietação é mesmo um valor.
Para nos ficarmos pelos sinais mais óbvios da organização desse território, não há nada mais cultural do que gastar 645 milhões de euros para construir uma dezena de estádios de futebol para o Euro 2004. Como não há nada de mais cultural do que, regularmente, promover Cristiano Ronaldo e a selecção nacional de futebol a modelos compulsivos de patriotismo.
Dizer isto não significa demonizar o futebol como espectáculo, muito menos menorizar o talento ou questionar a seriedade profissional seja de quem for. Significa tão só reconhecer que muitos valores culturais das nossas vidas e dos nossos modos de viver (é disso que estamos a falar!) estão inscritos no quotidiano apenas através de certas representações políticas e mediáticas do futebol.
Num livro recente (L’Après Littérature, ed. Stock, Paris) que não pretendo, de modo algum, sequer resumir, Alain Finkielkraut reflecte sobre uma conjuntura cultural de que a noção de “juventude” é um emblema de eleição. Finkielkraut fala de França, mas as suas reflexões são, no mínimo, motivadoras: “Sempre houve jovens, bem entendido, mas até uma data recente a juventude era uma idade da vida. Passou a ser uma modalidade do ser, uma entidade colectiva, uma cultura específica. (…) A sua necessidade primordial, dizem-nos, é a festa. A juventude vive sob o regime da intensidade.”
Embora não querendo simplificar o pensamento de ninguém, creio que essa pressão da “intensidade” não é estranha ao “paradigma do ilimitado” analisado por Manuel Maria Carrilho noutro livro fascinante, também recentemente editado (Sem Retorno, Grácio Editor, Coimbra). Ou ainda: vivemos sob o efeito de um “presentismo” em que a obrigatória vibração festiva dos acontecimentos (culturais, por certo) mascara o nosso lugar no tempo e as ligações orgânicas de todas as linguagens através das quais nos definimos e representamos.
Em abril de 2009, numa entrevista à France Culture [video], Jean-Luc Godard recordava, justamente, a dimensão política de todos os nossos gestos, citando uma frase perturbante de Claude Lefort: “As democracias modernas, transformando a política num domínio autónomo de pensamento, criam condições para o totalitarismo.” Eis um dispositivo — a “profissionalização” do trabalho político — que pode favorecer uma continuada despolitização da esfera individual e do sistema de relações em sociedade: é essa a cultura dominante.
Evocando e invocando a sua história pessoal e a história da “sua” Europa, Milan Kundera (citado por Finkielkraut) fala-nos também disso mesmo. Disse, um dia, o autor de A Insustentável Leveza do Ser: “O casamento feliz da cultura e da vida marca as revoltas centro-europeias com uma beleza inimitável que deixou em nós, que as vivemos, um encanto inapagável.”