À Solta na Internet: onde se cruzam o público e o privado |
O filme checo À Solta na Internet recorda-nos a complexidade do mundo de ecrãs em que todos os dias circulamos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 outubro).
As pequenas distribuidoras independentes continuam a desempenhar um papel fundamental na diversificação da oferta cinematográfica. A Zero em Comportamento, por exemplo, tem apostado em alguns títulos que, para lá do seu valor educacional, abordam temas que têm a ver, especificamente, com ambientes escolares — é o caso da reposição de Ser e Ter, de Nicolas Philibert, admirável retrato de uma escola infantil, consagrado como melhor documentário nos Prémios do Cinema Europeu referentes a 2002.
Agora, a mesma empresa lançou um outro documentário, À Solta na Internet, com tanto de inusitado como de perturbante. É também um título premiado — no seu país, a República Checa, foi distinguido como melhor documentário de 2020 —, construído a partir de um desafio invulgar: dar a ver o comportamento de alguns homens que, através de chats da Internet, tentam atrair meninas de 12/13 anos para actividades inequivocamente sexuais.
Dizer que se trata de um filme “sobre” a pedofilia será um resumo possível mas, a meu ver, precipitado. Porquê? Sobretudo porque a facilidade da generalização temática corre o risco de ceder a um modelo que o filme, em qualquer caso, sabe evitar. Dito de outro modo: não estamos perante um panfleto mediático (eventualmente pertinente, não é isso que está em causa); e também não se trata de desenvolver uma “tese”, seja ela psicológica, seja sociológica. Este é, de facto, um objecto documental que, passe a redundância, procura documentar algumas formas de comportamentos pedófilos.
À Solta na Internet propõe uma estratégia narrativa que decorre da aplicação de meios e dispositivos indissociáveis do cinema — entenda-se: envolvendo a procura de imagens e sons. Que acontece, então? Os dois realizadores, Barbora Chalupová e Vít Klusák, decidiram criar condições para colocar em cena diálogos de algumas meninas daquela idade com homens que, nos circuitos virtuais, procuram conhecê-las e manipulá-las.
Como fazê-lo? Cruzando a intensidade documental com o labor da ficção, isto é, inventando, precisamente, um dispositivo cinematográfico. As sequências iniciais servem para esclarecer o espectador sobre o “modus operandi” do filme, a começar pela criação de três personagens. Assim, Chalupová e Klusák organizam um “casting” para actrizes maiores de 18 anos: procuram jovens que, através de algum trabalho de caracterização, possam fazer-se passar por meninas de 12/13 anos e, mais do que isso, consigam lidar com situações no mínimo incómodas, muitas vezes inquietantes. Mais ainda: as jovens escolhidas possuem memórias pessoais que as podem ajudar a lidar com a violência (verbal e visual) das situações que vão protagonizar.
Depois de construir cenários para cada uma das personagens — em boa verdade, quase tudo se passa num estúdio de cinema —, a equipa do filme cria perfis fictícios para as três “meninas”. Na prática, poucos instantes passados sobre essa “invenção” de identidades, começam a surgir chamadas de vários homens cujas imagens o filme desfoca, embora mantendo a duração dos encontros virtuais e os diálogos que as actrizes vão improvisando com metódica acuidade. Entre as regras estabelecidas, há uma de prudente contenção: não fazer qualquer sugestão explicitamente sexual, esperar pelas “propostas” dos interlocutores masculinos. As situações são entrecortadas por conversas dos realizadores com as actrizes e também com psicólogos e analistas de comportamentos na Internet.
Escusado será dizer que o filme aplica linguagens que o aproximam, ou podem aproximar, da vulgaridade dos “apanhados” televisivos (recorde-se o triste historial da MTV nesse campo, promovendo-os como modelo compulsivo de divertimento “juvenil”). Com uma diferença que importa não escamotear: o objectivo de À Solta na Internet não é produzir uma situação caricata que, no final, sirva para celebrar a ridicularização do outro como um patético triunfo “social” — há mesmo uma sequência, porventura dispensável no interior do projecto, em que a equipa do filme confronta um dos homens filmados na Internet. O objectivo é expor o funcionamento potencialmente perverso e, mais do que isso, ameaçador da “transparência” do mundo virtual.
Nesta perspectiva, À Solta na Internet pode ser inscrito na galeria (afinal, escassa) de filmes que têm sabido questionar os hábitos contemporâneos de ver e ser visto na Internet, a começar, claro, pelo genial A Rede Social (2010), sobre o nascimento do Facebook, escrito por Aaron Sorkin e realizado por David Fincher. Sem esquecer, por exemplo, objectos secundarizados pelo mercado como Homens, Mulheres e Crianças (2014), de Jason Reitman.
Em última análise, trata-se de contrariar um lugar-comum mediático cujo poder se manifesta todos os dias. Consiste esse lugar-comum em descrever qualquer forma de agressão virtual a partir de um discurso securitário e paternalista que, afinal, se satisfaz com uma piedosa identificação das vítimas sem observar o complexo labirinto tecnológico e cultural, público e privado, em que tudo acontece. Longe de esgotar a questão, À Solta na Internet é, pelo menos, um objecto consciente da complexidade desse mundo povoado de ecrãs. E, nessa medida, um exercício de salutar pedagogia.