Um Bar no Folies-Bergère (1882): tudo é subjectivo |
Um belo romance de Marc Pautrel conduz-nos a uma reencontro com a modernidade da pintura de Manet — este texto foi publicado no Diário de Notícias (07 novembro).
Conhecemos e reconhecemos a herança do pintor francês Édouard Manet (1832-1883), antes do mais através de dois ou três quadros emblemáticos: desde logo, Le Déjeuner sur l’Herbe e Olympia (ambos de 1863); depois, há as suas muitas cenas do quotidiano que, como diz o cânone artístico, deslocaram as leis do realismo para a revolução impressionista, porventura criando condições para as futuras festividades da abstracção — para nos ficarmos por um exemplo universal, lembremos a multidão de Música nas Tulherias (1862), ao mesmo tempo um grupo historicamente situado e uma entidade que parece existir fora das fronteiras humanas do tempo.
Como dizia Pierre Bourdieu, há um “efeito Manet” que abala toda a arte moderna, ou melhor, cria as próprias condições de eclosão de uma nova modernidade. Por alguma razão, o seu curso sobre Manet, no Collège de France (1998-2000), está publicado com o subtítulo “Uma Revolução Simbólica” (Seuil, 2013).
Agora, com o romance Le Peuple de Manet, de Marc Pautrel, descobrimos mais um admirável exercício de abordagem crítica da obra do pintor. Aliás, o essencial deste livrinho de 160 páginas poderá resumir-se na pequena e deliciosa “contradição” que tende a chocar a preguiça intelectual do senso comum: a escrita romanesca não exclui, antes potencia, o valor crítico da abordagem.
A questão é actualíssima, quanto mais não seja porque em diversas actividades criativas (a começar pelo cinema), continuam a existir os artistas que dizem apenas “esperar” que o seu trabalho seja avaliado “de forma objectiva”. Na verdade, o que querem dizer é que não têm outra ambição que não seja a confirmação, pelos “outros”, das suas próprias intenções enquanto criadores — como se apresentar uma obra não fosse, por definição, abri-la às infinitas diferenças dos olhares, pensamentos e palavras que fazem a complexidade do mundo. Em boa verdade, do ponto de vista do criador, a obra é, não pode ser outra coisa que não seja, um objecto de perdição.
Publicado na colecção “L’Infini”, dirigida por Philippe Sollers (Gallimard, 2021), Le Peuple de Manet possui uma estrutura que até poderia ser a de um tradicional estudo universitário. Assim, temos uma primeira parte que poderemos classificar como “biográfica”, ainda que muito distante do academismo sem ponto de vista de uma mera acumulação “factual” — como se, no limite, Pautrel se colocasse na posição de quem não possui qualquer informação biográfica sobre Manet, “inventando” o seu retrato apenas, justamente, através da sua pintura. Na segunda parte, surgem algumas dezenas de textos, 46 para sermos exactos, sobre outros tantos quadros de Manet.
Esta segunda parte apresenta-se com o subtítulo “O Seu Povo”, reforçando a ideia já expressa no título do romance de que há um “povo de Manet”. Que povo é esse? São os muitos cidadãos anónimos, engolidos pela história, por vezes mortos nos seus episódios mais violentos — directa ou indirectamente, por aqui passam sinais do golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte em 1851, da invasão prussiana em 1870 e das convulsões que marcaram a Comuna de Paris, em 1871. E são também todos aqueles que, na pintura e através da pintura, ficam inscritos (também) na história da arte: “Há tanta coisa a apreender na pintura, uma infinidade de realidades que é preciso saber capturar.”
Escreve Pautrel a propósito da figura central de Um Bar no Folies-Bergère (1882): “Ela é criada e está vestida como uma criada, mas não deixa de ser mais graciosa que uma burguesa, com a linha de botões escuros de madrepérola descendo ao longo do vestido de veludo, e a saia cinzenta a rimar com os botões, e aquela jóia no pescoço, tão refinada, tão íntima.”
O quadro, um dos derradeiros de Manet, nasce de uma interrogação das coordenadas e vivências do espaço público que não é estranha à própria liberdade criativa deste realismo de todas as ambivalências. Sabe-se, aliás, que Suzon, a jovem modelo, trabalhava no Folies Bergère, mas que o quadro não foi executado como uma “reprodução”, tendo sido totalmente pintado no atelier de Manet. O espelho de fundo gera mesmo uma sensação de vertigem (quem está a olhar?) que se duplica, ou multiplica, através da imagem reflectida das costas de Suzon, para mais a ser interpelada por uma figura masculina (à direita) que, no irrealismo da sua colocação física, parece disputar o lugar imaginário do próprio pintor.
O propósito do gesto artístico não é o de confirmar os sinais dispersos do mundo, mas de superar com o leitor/espectador a mentira existencial de qualquer forma de objectividade — tudo é subjectivo. Porque razão pinta, então, Manet? Responde Pautrel: “Para vencer o nada.”