Lashana Lynch e Daniel Craig |
Adiado várias vezes devido à pandemia, 007: Sem Tempo para Morrer o 25º oficial de James Bond está nas salas escuras: Daniel Craig despede-se da personagem em tom de requiem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 setembro).
Neste nosso pobre mundo narrativo, a própria noção de mito foi instrumentalizada, não poucas vezes reduzindo o espectáculo a uma pornografia de excessos visuais. Em cinema, as novas gerações estão mesmo a ser mesmo ensinadas (não pela crítica de cinema, já agora) a conceber o mito como banal acumulação de efeitos especiais: quanto mais cidades destruídas, mais “mitológicos” são os super-heróis… Uma tristeza, enfim. Em qualquer caso, ainda nos resta James Bond. Com filmes melhores ou piores, o agente secreto ao serviço de Sua Majestade Britânica persiste como personagem visceral do nosso imaginário da aventura. Por isso mesmo, aguardámos com expectativa a estreia do 25º título oficial da saga. Inicialmente agendado para abril de 2020, várias vezes adiado devido à pandemia, aí está 007: Sem Tempo para Morrer.
O mito, convém lembrar, não nasce necessariamente de factos artificiosos que se “sobrepõem” aos cenários da nossa realidade. Não é um efeito especial, mas sim uma narrativa. O seu poder é tanto mais envolvente quanto, quase sempre, o mito lida com os limites da própria vida, quer dizer, a permanente e enigmática possibilidade da morte.
Assim é o novo Bond, quinto e último protagonizado por Daniel Craig. O título português nasce, aliás, de um equívoco de interpretação da própria lógica da acção: não se trata de sugerir que o herói vive “sem tempo para morrer”, mas sim de sublinhar que “este não é o tempo de morrer”.
Digamos que o tempo da ironia já passou. Lembremos, a esse propósito, um momento exemplar de Dr. No/Agente Secreto 007 (1962), primeiro filme da série, obviamente com Sean Connery. Nele encontramos uma linha de diálogo que define todo um entendimento frívolo da morte, a ponto de atrair um perverso gosto caricatural; assim, a certa altura, os maus da fita perseguem Bond num carro funerário, conseguindo ele que se despistem e caiam num precipício; quando alguém lhe pergunta como é que tudo aquilo acontecera, Bond esclarece, com desconcertante objectividade: “Creio que iam a caminho de um funeral.”
Desta vez, não se trata exactamente de um funeral, mas de um requiem. Porquê? Porque Bond reaparece a viver uma frágil utopia romântica, a ponto de a sigla 007 pertencer agora à agente Nomi (Lashana Lynch). No esplendoroso cenário de Matera, no sul de Itália, a sua relação com Madeleine (Léa Seydoux), vinda do anterior Spectre (2015), parece já não pertencer ao universo Bond. É certo que, tal como Madeleine observa, ele mantém o tique de olhar constantemente por cima do ombro à procura de algo ou alguém ameaçador… Mas o tom é, por assim dizer, pós-Bond: como se fossemos assistir à crónica íntima de uma serena reforma.
Não será assim, claro. Até porque, desde muito cedo, o filme nos recorda que há labirintos por conhecer e percorrer. “Porque é que eu haveria de te trair?”, pergunta Madeleine, ao que Bond responde com a secura que, nele, é uma espécie de assinatura emocional: “Todos temos segredos. Só que ainda não chegámos aos teus.”
Na prática, 007: Sem Tempo para Morrer vai contrariando a placidez dos primeiros momentos, fazendo regressar o arqui-inimigo Blofeld (Christoph Waltz), também presente em Spectre, complementando-o com Lyustsifer Safin (Rami Malek), cérebro purista que, à maneira dos “pequenos homens” que Bond identifica na história da humanidade, tenta impor o paraíso através do triunfo do inferno. Convenhamos que, no plano narrativo, a tragédia que se pressente teria ganho se o filme realizado por Cary Joji Fukunaga tivesse arriscado mais na tensão psicológica, mostrando alguma contenção no habitual “caderno de encargos” do fogo de artifício da acção física.
Dito isto, importa reconhecer que o confronto inicial, em Matera, entra para a galeria das melhores cenas de perseguição do universo Bond, ao mesmo tempo que, infelizmente, o essencial protagonismo de Safin se apresenta claramente prejudicado pelo desaparecimento da personagem durante todo bloco central do filme (além de que a interpretação “robotizada” de Malek não parece ser a solução mais interessante para a personagem).
Fica esse magma simbólico da morte que o filme vai preservando como potencial narrativa trágica. Não faltará, por certo, quem detecte nos “nano-robots” do programa genético de Safin — susceptíveis de contaminar os corpos humanos, demonizando todos os contactos de uma pele com outra pele — uma bizarra premonição do Covid-19… Sem qualquer fundamento, como é óbvio.
Seja como for, o que realmente nunca tínhamos visto no universo Bond são as personagens infantis. Sem qualquer decorativismo, entenda-se: Madeleine na excelente cena inicial, defendendo-se do ataque de Safin e tentando proteger a mãe alcoólica; mais tarde, a filha da própria Madeleine, agarrada à sua boneca de malha, tal como a mãe ameaçada por Safin. Uma e outra são personagens estranhas ao imaginário das histórias de espionagem protagonizadas por qualquer encarnação de 007, em qualquer época. Definem um horizonte afectivo capaz de justificar o enfrentamento da morte. Estranhos tempos, Mr. Bond — seja bem-vindo.