quinta-feira, outubro 07, 2021

Clint Eastwood
à procura do paraíso perdido

Cry Macho (2021)

Cry Macho evoca paisagens e histórias do velho Oeste, mesmo se a sua acção decorre no século XX: na dupla condição de actor e realizador, Clint Eastwood é, afinal, o símbolo de um classicismo que não envelhece — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 setembro).

Eis o que seria, talvez, um sugestivo ponto de partida para produzir um filme de episódios: pedir a alguns cineastas que filmassem a sua ideia de paraíso… É caso para dizer que, no caso de Clint Eastwood, o trabalho está feito: a sua nova longa-metragem, Cry Macho (entre nós lançada com o subtítulo A Redenção), possui esse misto de felicidade e desencanto — talvez não seja possível conceber uma coisa sem a outra — que caracteriza uma visão cujo ponto de fuga envolve algo de paradisíaco.
Onde fica, então, o paraíso de Clint Eastwood? Pois bem, é antes de tudo o mais um paraíso cinéfilo. Entenda-se: um cinema americano (ainda) não viciado nas rotinas de super-heróis e afins, capaz de se interessar por gente de carne e osso. Mais do que isso: um cinema que, em particular ao longo das décadas de 1960/70, se reinventou através da revisitação crítica do seu próprio passado — a começar pelas aventuras do “western” clássico, —, nessa medida reavaliando também factos e mitos da história dos EUA.
Será preciso relembrar o lugar preponderante que Eastwood ocupa na história dessas décadas em Hollywood? Cry Macho parece, aliás, saído da produção desse tempo, com chancela de um grande estúdio (que se repete: este é um filme Warner, gerado pela produtora de Eastwood, a Malpaso).
A esse propósito, convém sublinhar que estamos perante um “western”, tão genuíno no espírito quanto atípico na teia dramática. Isto porque já não vogamos nos cenários da epopeia clássica do Oeste — de que Eastwood, justamente, é um dos mais legítimos herdeiros: lembremos apenas o “oscarizado” Imperdoável (1992) —, mas sim em pleno século XX, com a acção a iniciar-se no ano de 1979.

Terra e cavalos

Eastwood assume a personagem de uma ex-vedeta de rodeos, ex-criador de cavalos, encarregado de uma missão espinhosa: ir buscar ao México o filho de um amigo (interpretado pelo cantor country Dwight Yoakam), um rapaz de 13 anos (Eduardo Minett) cuja existência, junto de uma mãe abusiva, será tudo menos paradisíaca…
Os dados assim lançados remetem-nos para um património de histórias, que é também um imaginário histórico, em que são elementos determinantes as especificidades do território e, muito em particular, os dramas de fronteira (EUA/México). Aliás, tais componentes pontuam alguns dos mais notáveis “westerns” da época citada, incluindo os emblemáticos A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, e O Vale do Fugitivo, de Abraham Polonsky (ambos de 1969).
Não é certamente por acaso que Cry Macho evoca a herança simbólica desse cinema através de elementos paisagísticos que a maior parte do cinema “digital” dos nossos dias, pura e simplesmente, desconhece. Não se trata, entenda-se, de fabricar “postais ilustrados” mais ou menos vistosos e descartáveis. Nada disso: quando Eastwood filma a sua própria silhueta recortada na mancha azul avermelhada de um pôr do sol, aquilo a que assistimos, longe de ser banalmente decorativo, decorre da sensibilidade e da crença de um cinema nascido da convivência carnal com a pulsação primordial da terra.
Daí também o valor anímico da presença dos animais em Cry Macho — sem esquecer que Macho é o nome do galo que serve de companhia e fonte de rendimento (em combates ilegais) ao rapaz que Eastwood vais resgatar. Se no seu périplo mexicano ele pressente uma réstia de paraíso — através da personagem da mulher (Natalia Traven) que o acolhe na mais depurada serenidade amorosa —, tal pressentimento não pode ser dissociado de um modelo de existência sempre pontuado pela terna convivência com os animais. Como ele diz ao rapaz, quando o ensina a montar a cavalo: “Olha para onde vais, vai para onde olhas.”


Contar histórias

A história da gestação de Cry Macho poderia servir para outro filme à maneira das sagas com que Hollywood tem espelhado as suas convulsões internas. Assim, foi em 1988 que o produtor Albert S. Ruddy convidou Eastwood a interpretar a respectiva adaptação cinematográfica, tendo recebido uma resposta negativa: Eastwood optou por rodar The Dead Pool/Na Lista do Assassino, de Buddy Van Horn, uma das sequelas do policial Dirty Harry (1971).
Também produtor do novo filme, Ruddy (nascido, tal como Eastwood, em 1930) andava desde os anos 70 a tentar adaptar ao cinema a história escrita por N. Richard Nash (1913-2000), primeiro como argumento cinematográfico, depois como romance (publicado em 1975). O projecto teve vários candidatos a protagonista — incluindo Robert Mitchum, Burt Lancaster e, já no século XXI, Arnold Schwarzenegger —, mas nunca se concretizou. Agora, o legado de Nash foi revisto por Nick Schenk, argumentista que já tinha colaborado com Eastwood em Gran Torino (2008) e Correio de Droga (2018).
Dir-se-ia que todas estas peripécias reflectem as dinâmicas mais fundas do actual cinema americano. Por um lado, deparamos com uma produção dependente de uma tecnologia exuberante (os célebres “efeitos especiais”) que, mesmo não esquecendo as maravilhas que já gerou, parece cada vez mais condicionada por uma lógica de puro marketing. Por outro lado, criadores como Eastwood não abdicam de cultivar o cinema como uma maravilhosa arte narrativa. O prazer visceral de contar histórias não será o paraíso, mas anda lá perto.