Nestes tempos de incerteza, eis uma curiosa lição moral sobre a nossa evolução “social”: um narcisista precisa de espelhos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 outubro).
Bretman Rock, filipino, nascido em 1998, faz aquilo que quase todos os jovens “influencers” fazem. A saber: tem uma conta no Instagram em que publica muitas selfies, com predomínio para retratos ao espelho a fazer caretas.
Ao escrever este texto, verifico que já vai em 1632 publicações. No dia 10 de julho, por exemplo, descubro-o numa série de cinco fotos a “actualizar” informação sobre a sua cabeleira. O portfolio, consagrado por mais de um milhão de gostos, inclui um esclarecimento transcendental: “Nem sequer sei porque sinto a necessidade de publicar uma actualização do crescimento do cabelo…”
Ao que parece, a sua carreira começou no YouTube com videos dedicados a conselhos de beleza, conduzindo-o, entre outras glórias, ao protagonismo de um “reality show” na MTV (Following: Bretman Rock). Este ano tem estado a publicar, também no YouTube, uma série de videos (30 Days With: Bretman Rock) que, a certa altura, o apresentam como um explorador da selva lutando pela sobrevivência…
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Imagine-se! De qualquer modo, nos momentos finais desse mesmo episódio, depois da felicidade que foi conseguir fazer uma fogueira no meio da floresta, Bretman confessa-nos que, agora, se vê como o “rei da selva”. E desemboca na pergunta que, modestamente, já tinhamos pressentido: “Qual é a minha mensagem para o universo?” Pois bem, eis a resposta: “Sinto que estou preparado. Estou preparado seja para o que for que tenham reservado para mim.”
Nada disto é excepcional. Decorre mesmo de uma regra institucionalizada pelo poder mais perverso da chamada globalização: ser jovem no mundo virtual que se autoproclama “social” passou a confundir-se com a duvidosa arte de dizer banalidades e celebrar a irrisão. Como alguns jovens, precisamente, há cerca de um ano e meio, algures no Algarve, respondendo a uma reportagem televisiva sobre a crescente ameaça do Covid-19: sem máscara, garrafa de cerveja na mão, perguntavam com comovente candura qual era o problema — eram “apenas” jovens, estavam “apenas” a divertir-se.
Tudo isto seria apenas mais uma colecção de sinais sobre o estado da nossa cultura juvenil, não se desse o caso de, subitamente, Bretman Rock emergir como um pioneiro: este mês, tornou-se o primeiro homem assumidamente gay a surgir na capa da Playboy (que, desde o verão de 2020, se publica apenas online). Num post do Instagram, ele próprio enaltece o simbolismo da publicação: “Ter um homem na capa da Playboy é um grande compromisso com a comunidade LGBT.” Além do mais, até agora, só dois homens tinham figurado na capa da revista: Hugh Hefner, seu fundador, e o rapper Bad Bunny.
Podíamos tentar diversificar o âmbito destas memórias e reflectir, por exemplo, no papel que a revista teve na contra-cultura das décadas de 1960/70, publicando autores como John Updike, Joyce Carol Oates, Doris Lessing, Kurt Vonnegut ou John le Carré. Sem esquecer, naturalmente, que comprávamos a Playboy “para ler os textos”. Mas não é disso que se trata — acontece que há em tudo isto um silêncio ensurdecedor que não bate certo.
[playboy.com] |
A questão que coloco é de outra natureza. Visa, sobretudo, o pântano ideológico em que a aceleração mediática — e o ilusório liberalismo das nossas sociedades “avançadas” — tantas vezes nos obriga a viver. Dito de outro modo: como e porquê, em alguns discursos, um facto classificado como degradante para uma mulher (entenda-se: posar na Playboy) se transfigura em militância redentora só porque o protagonista é, agora, um homem gay?
Há aqui qualquer coisa de cínica instrumentalização mediática. Há mesmo um conceito de “gay” que seria salutar questionar. No limite, esse conceito exprime-se através de formas obscenas como o discurso de um autor de telenovelas que, há mais de uma década, defendia a pertinência “social” dos seus escritos. Porquê? Porque, dizia ele, abordava dois temas fracturantes: o “aborto” e os “homossexuais”. Velha lição narrativa: quando uma personagem, seja ela qual for, de sexo evidente ou obscuro, não passa de um peão incauto para “ilustrar” um tema, o mínimo que se pode dizer é que a sua irredutibilidade como pessoa está reduzida a coisa indiferente e descartável.
O que, bem entendido, não exclui o reconhecimento de que Bretman Rock, ainda que autor de uma medíocre filosofia capilar, surge na Playboy em magnífica fotografias assinadas por Brian Ziff. “Sou uma Coelhinha!”, escreve ele, eufórico, no seu Instagram — já tem mais de dois milhões de “likes” e um deles é meu.