Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street: para onde estão a olhar? |
De que falamos quando falamos de dinheiro? Entre lágrimas e euforia, as recentes imagens de Lionel Messi relançam a pergunta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 agosto).
Há uma perversão simbólica no espaço das nossas culturas. Exactamente: culturas, no plural — diferentes, contrastadas, não poucas vezes inconciliáveis. Que perversão é essa? O liberalismo informativo que domina as representações sociais do futebol.
Será preciso relembrar que não há nada mais cultural — entenda-se: produtor e transportador de valores — que o mundo do futebol? Afinal de contas, Cristiano Ronaldo é o mais forte símbolo de patriotismo que, todos os dias, se propõe e promove junto da nossa juventude. Nada poderia ser mais visceralmente cultural.
Essa cultura do futebol envolve algumas curiosas representações mediáticas do dinheiro. Assim, ouvimos alguns comentadores de futebol, na condição de adeptos de determinados clubes, a protagonizar uma carinhosa identificação (“nós”) com a vida financeira dos respectivos emblemas: “Gastámos X milhões para comprar o jogador A, B ou C… Ainda podemos gastar mais Y milhões…”
Nada disto, entenda-se também, tem que ver com a legitimidade discursiva de tais adeptos. Nem se trata de convocar essa ilusão segundo a qual o dinheiro existe numa espécie de vasos comunicantes que, por mera boa vontade, poderíamos equilibrar… Só mesmo por patética inocência poderemos pensar que o rendimento anual de Jorge Jesus (3 milhões de euros, segundo notícias sobre o seu mais recente contrato) seria a solução mágica para resolver, por exemplo, o imbróglio da TAP ou os dramas estruturais que afectam as populações do interior do país.
O que importa ter em conta não é a vida pessoal seja de quem for, muito menos a discussão dos méritos profissionais que lhe permitem auferir determinado rendimento. É, isso sim, o “naturalismo” das representações do dinheiro na cultura do futebol. Recorde-se como a história do cinema português regista a indignação de muitas vozes contra “dinheiro mal gasto” na produção de filmes, ao mesmo tempo que os rendimentos anuais de Cristiano Ronaldo (que davam para fazer, pelo menos, umas dezenas de filmes portugueses) são tratados como um objectivo de vida que os jovens devem integrar.
Reencontrámos tal ligeireza na maior parte dos tratamentos da mudança de clube de Lionel Messi. Vimo-lo a chorar na despedida de Barcelona; três dias mais tarde, exultava de alegria em Paris — não tenho nenhuma moral redentora para contrapor a tão brutal contraste, embora seja inevitavelmente sensível ao facto de o protagonista ser o mesmo. Senti apenas a falta de alguma representação do dinheiro neste conto moral protagonizado por Messi, quase sempre reduzido a dois clichés mediaticamente muito poderosos: primeiro, as lágrimas (“quem chora está do lado da verdade”); depois, a festa (“quem celebra desfruta de uma razão inquestionável”).
Em nome do mais básico pudor, creio que seria saudável dispensar, de uma vez por todas, os discursos altruístas sobre o “amor à camisola”. Mas não afunilemos a questão no universo do futebol, mesmo não esquecendo o seu planetário poder discursivo e político (incluindo o facto de a classe política aceitar ser câmara de eco desse mesmo poder). A questão de fundo é, aqui, o modo como vemos e representamos o dinheiro.
Em 2016, Money Monster, filme realizado por Jodie Foster, com George Clooney no papel central, colocava em cena uma situação limite (fictícia, é verdade) da pornografia mediática do dinheiro: numa subtil composição, Clooney compunha uma estrela de televisão que protagonizava um programa de “entretenimento” em que dava sugestões para o cidadão comum investir as suas poupanças… Digamos, para simplificar, que as coisas não corriam bem.
Isto sem esquecer a obra-prima de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street (2013), em que Leonardo DiCaprio interpretava um corretor da bolsa, Jordan Belfort (personagem verídica, neste caso). Poderá dizer-se que Scorsese se assumia como herdeiro das encenações da ganância que pontuam a história de Hollywood, a começar pelo genial Greed, realizado por Eric von Stroheim em 1924. Mas não era uma simples passagem de testemunho. Scorsese mostrava como, dos artigos de luxo à sexualidade, das palavras aos ecrãs, o dinheiro não existe como banal adereço das relações humanas — o dinheiro é um cenário e, para utilizar uma palavra que já foi demonizada e agora está na moda, uma narrativa.