domingo, maio 09, 2021

“Toca Misty para mim”
— memória de Jessica Walter

Clint Eastwood e Jessica Walter
Play Misty for Me, 1971

A morte da actriz Jessica Walter, aos 80 anos de idade, faz-nos revisitar a sua composição em “Destinos nas Trevas”, um “thriller” sobre um caso de assédio sexual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 março).

Jessica Walter, actriz de delicada e complexa presença dramática, faleceu no dia 24 de março, durante o sono, na sua casa de Manhattan — contava 80 anos. Os obituários escritos nos EUA identificam-na, antes de tudo o mais, como intérprete da personagem de Lucille Bluth, a mãe alcoólica da série de comédia Arrested Development/De Mal a Pior (2003-2019).
É um facto que a esmagadora maioria das suas composições pertence a produções televisivas, incluindo a voz de Malory Archer em mais de uma centena de episódios de Archer, série de animação paródica sobre o mundo dos espiões (iniciada em 2009). Seja como for, na primeira fase da carreira, surgiu em dois títulos emblemáticos da história de Hollywood, reflectindo as convulsões temáticas e narrativas dos anos 60/70, antes do triunfo da geração de Steven Spielberg e George Lucas — são eles Lilith e o seu Destino (1964), de Robert Rossen, e Destinos nas Trevas (1971), de Clint Eastwood.
Lilith e o seu Destino
(no original apenas Lilith) justifica a aplicação literal da expressão “amor louco” — nele se faz o retrato íntimo de uma pulsão amorosa assombrada pela loucura. Com Warren Beatty e Jean Seberg, é uma obra-prima à espera de ser resgatada de um generalizado esquecimento. Aliás, Rossen continua a ser um dos mais ignorados mestres da fase final do classicismo — é dele, por exemplo, The Hustler/A Vida É um Jogo (1961), saga cruel de um jogador de bilhar interpretado por Paul Newman, tendo como base o romance de Walter Tevis (o autor de Gambito de Dama).
Algo em parte semelhante se poderá dizer sobre Destinos nas Trevas, quanto mais não seja porque um persistente lugar-comum tende a situar a trajectória de Clint Eastwood como realizador apenas a partir de Imperdoável (1992), o filme que lhe valeu o primeiro triunfo nos Óscares. Na verdade, Imperdóavel foi a 16ª longa-metragem que dirigiu, tendo começado, precisamente, com Destinos nas Trevas, faz agora 50 anos. Há no filme uma ambígua actualidade temática: este é, afinal, um “thriller” centrado num caso de assédio sexual, ilusoriamente romântico na origem, a pouco e pouco marcado por uma perturbante violência.
Ele é Dave (Eastwood), apresentador de um programa noturno de rádio, atendendo pedidos telefónicos dos ouvintes; ela é Evelyn (Walter), fã do programa que frequentemente lhe pede para passar um standard do jazz, “Misty”, de Erroll Garner — tal predilecção está expressa no título original do filme, Play Misty for Me (à letra: “Toca Misty para Mim”). O envolvimento de Dave e Evelyn parece ser um namoro passageiro, mas transfigura-se por completo quando ele, face ao comportamento possessivo dela, a tenta afastar da sua vida… Em termos simples: esta é a história de um homem assediado por uma mulher.


Meio século depois, o discreto brilhantismo de Play Misty for Me correria (ou corre) o risco de ser encarado como um insulto contra “todas” as mulheres e, mais do que isso, um tratamento demagógico do “feminino”. Na leitura de muitos filmes, sobretudo nos EUA, esse tem sido mesmo um efeito colateral das componentes mais esquemáticas do movimento #MeToo.
O debate está viciado. Cinematograficamente, entenda-se. Não creio que seja preciso sublinhar a importância (social e política) das campanhas e medidas legislativas no sentido de denunciar, combater e punir todas as formas de violência masculina contra as mulheres. O que está em causa é o facto de, em paralelo, estarmos a assistir a um fundamentalismo “artístico” que reduz qualquer personagem, masculina ou feminina, de uma narrativa com claras componentes sexuais a símbolo obrigatório de “todos” os homens ou “todas” as mulheres… Pode estar em jogo Shakespeare ou Clint Eastwood, mas o efeito é o mesmo: estupidez cultural.
Jessica Walter é admirável na composição da sua Evelyn, como admirável é o trabalho de Clint Eastwood, desenvolvendo o filme como uma desmontagem das mais banais ilusões românticas. Em boa verdade, o que ele encena é algo de profundamente incómodo. A saber: o mútuo desconhecimento entre “masculino” e “feminino”: Evelyn quer mesmo matar Dave, mas é apenas uma mulher — “uma”, não todas. E Play Misty for Me, apenas um filme — “um” entre muitos.

>>> Misty, por Erroll Garner.