sábado, maio 22, 2021

O feminino em forma de teorema

Carey Mulligan

Distinguido com o Oscar de melhor argumento original, Uma Miúda com Potencial é uma comédia dos nossos dias que sabe refazer os valores de uma certa herança clássica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 abril).

Ao descobrirmos agora um filme como Uma Miúda com Potencial, da inglesa Emerald Fennell, não podemos deixar de o inscrever num mapa temático desenhado pelo movimento #MeToo. Dito de forma esquemática, esta é a história de Cassie Thomas, uma “jovem prometedora” (título original: Promising Young Woman) com uma existência, no mínimo, desconcertante. À beira dos 30 anos, tendo falhado os estudos de medicina, Cassie vive com os pais e trabalha num café; mais ou menos uma vez por semana, transfigura-se em frequentadora de clubes noturnos, vai-se embebedando e acaba por se envolver em encontros fortuitos com homens.
Carey Mulligan interpreta tudo isso com a alegre frieza de quem está a demonstrar um teorema. Na verdade, Cassie faz o que faz de forma absolutamente consciente, numa cruzada motivada pela memória de uma situação de abuso sexual que, nos tempos da escola secundária, testemunhou: o seu objectivo é, agora, castigar os homens que tentam seduzi-la.
Um filme é um filme é um filme… E nem mesmo a justeza moral da defesa dos direitos das mulheres se pode confundir com a promoção gratuita das maiores mediocridades cinematográficas. Lembremos o exemplo de Ocean’s 8 (2018), filme protagonizado por algumas talentosas actrizes — Cate Blanchett, Sarah Paulson, Sandra Bullock, etc. — que se apresentou como versão “feminista” da série de Steven Soderbergh iniciada com Ocean’s Eleven (2001). Infelizmente, estávamos perante um espectáculo disparatado e pueril que, a meu ver, penalizava o próprio sistema de valores que, supostamente, se estava a celebrar. Além de que reconhecer a excelência do trabalho de Soderbergh não decorre de nenhum pressuposto “masculino”, antes de um ponto de vista (discutível, não é isso que está em causa) visceralmente cinéfilo.
Ora, nesta paisagem social em que o esquematismo panfletário tende a desvalorizar o pensamento sobre o cinema, o filme de Fennell (também actriz, intérprete de Camilla Parker Bowles na série The Crown) distingue-se pela inteligência de evitar qualquer “militância” mais ou menos demonstrativa. E não há dúvida que o argumento original, também de sua autoria, distinguido com um Oscar, é peça fundamental na dinâmica dramática do filme.
A exposição da estupidez machista, neste caso associada à violência de algumas personagens masculinas, é tanto mais eficaz quanto Uma Miúda com Potencial se distingue por um bizarro cruzamento de géneros, talvez nem sempre muito controlado, mas sugestivo, paradoxal, irónico e pleno de gravidade. Dir-se-ia que Fennell reencontra um certo espírito de comédia, ligado à herança de clássicos assinados por Billy Wilder ou Alexander Mackendrick (realizador de O Quinteto Era de Cordas, título lendário da comédia negra britânica), por vezes atraindo algumas variantes do cinema de terror. Apetece aplicar uma frase feita: este é um filme dos nossos dias… Com a ressalva de que, desta vez, o gosto pelo cinema supera qualquer maniqueísmo mediático ou sociológico.