quinta-feira, maio 20, 2021

"Nomadland"
— as novas paisagens americanas

Frances McDormand: uma América que existe
como "terra de nómadas"

Vencedor dos Oscars, Nomadland faz o retrato de uma América marcada pela crise económica, nunca reduzindo as suas personagens a figuras banalmente pitorescas — este texto (com ligeiras diferenças) foi publicado no Diário de Notícias, antes da atribuição dos Oscars (22 abril).

A estreia de Nomadland, filme americano realizado pela chinesa Chloé Zhao, adquiriu um suplemento simbólico, porventura inevitável. Por causa dos Oscars, mas também devido à sua condição de objecto de produção independente, politicamente activo, expondo as convulsões de um grupo de personagens a viver na “terra de nómadas” que o título identifica.
Tais rótulos não diminuem a singular energia do filme, e também a sua delicada beleza interior. São, em qualquer caso, sintomáticos do simplismo mediático que todos os dias nos assalta (e que, por vezes, nem que seja por cansaço, contribuímos para reforçar).
A caracterização de Nomadland como “produção independente” confunde-se com um lugar-comum panfletário, difícil de justificar. Isto porque o filme foi produzido pela Searchlight Pictures, ex-Fox Searchlight Pictures, empresa do coração de Hollywood, já que integra o império dos estúdios Disney (precisamente desde que a Fox, casa mãe da Searchlight, foi adquirida pela Disney, em março de 2019, por 71,3 mil milhões de dólares).
O retrato de Chloé Zhao como uma “resistente feminina” tem também contribuído para reduzir o seu talento a um estatuto “militante” formatado pelas rotinas mediáticas. O que, entenda-se, não exclui, antes pelo contrário, uma chamada de atenção para as notícias que dão conta de alguma marginalização da sua obra e do seu nome no mercado da China. Acontece que Zhao passou a ser uma profissional ligada ao sistema das superproduções: trabalha, neste momento, na preparação de Eternals, filme com chancela Marvel (também propriedade Disney), a casa dos super-heróis que, com excepções mais ou menos interessantes, se transformou no lugar menos inventivo de Hollywood, promovendo uma noção de “cinema juvenil” que se vai esgotando na multiplicação de “efeitos especiais” aplicados a narrativas pueris — com Angelina Jolie a liderar o elenco, Eternals, acreditemos, poderá uma daquelas excepções.

Uma vida nómada

O subtítulo português de NomadlandSobreviver na América — corre o risco de se transformar num emblema, também ele, simplista. Terá havido uma motivação concreta para tal escolha: o livro Nomadland, da jornalista Jessica Bruder, que serviu de ponto de partida para o argumento do filme (também da responsabilidade de Zhao), ostenta um subtítulo que refere, precisamente, o tema da “sobrevivência” (Surviving America in the Twenty-First Century). Em todo o caso, seria bom não cedermos a outro vício mediático — a pornografia da piedade, bem diferente da nobreza da compaixão —, encarando as personagens de Nomadland como “vítimas” compulsivas, apenas à espera da nossa caridade narrativa.
No plano temático, importa, por isso, sublinhar que as personagens de Zhao não são tratadas como seres à deriva, impotentes perante os dramas do seu destino social. Claro que estamos perante pessoas que escolheram o seu precário modo de vida, nómada, precisamente, na sequência da recessão de 2007-09 (período investigado pelo livro de Bruder), mas importa não minimizar isso mesmo: o gesto de escolha. Como diz a personagem central, Fern, à sua sobrinha, ela não é uma sem-abrigo (“homeless”), mas sim uma “sem-casa” (“houseless”).

Contra o pitoresco

Nomadland é o exacto contrário de um filme pitoresco, sobre personagens pitorescas. A composição de Fern por Frances McDormand é, nesse aspecto, exemplar. Resistindo a qualquer forma de ironia fácil — que, em alguns filmes, a tem limitado desde que ganhou o Oscar com Fargo (1996) —, McDormand consegue dar vida a uma figura tocante que Zhao evita encerrar em qualquer determinismo “psicológico”.
Fern é uma figura tanto mais viva e fascinante quanto a conhecemos pela vontade indómita, porventura insensata, de continuar a viver na sua caravana, concebida, decorada e habitada como uma verdadeira casa. O mesmo se dirá, aliás, de Dave (interpretado pelo sempre discreto e impecável David Strathairn), outra alma errante que se cruza com Fern — o seu reencontro acidental, encenado com pudica contenção, é um dos momentos mais belos de Nomadland.
Zhao tem 39 anos, vivendo desde os 15 fora da China (primeiro em Inglaterra, depois nos EUA). Obviamente marcada pela mitologia da viagem no interior da América, a sua visão pode ser descrita como o avesso do clássico “on the road”. Ou melhor, como o reencontro de tudo aquilo que, nessa ânsia geográfica, envolvendo sempre uma imensa vulnerabilidade económica, se vai transfigurando em demanda interior.
Daí que Nomadland passe a integrar uma colecção de filmes “made in USA” que, em momentos históricos muito diversos, reflectiram a drástica interrogação da identidade americana. Podemos evocar, por exemplo, a referência tutelar de As Vinhas da Ira (1940), de John Ford, sobre a Grande Depressão, ou Easy Rider (1969), de Dennis Hopper, amargo balanço das ilusões libertárias da década de 60. Para lá das muitas diferenças, todos eles encontram na paisagem a derradeira utopia cinéfila.