[ 1959 ] |
As fotografias dos primeiros filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut, assinadas por Raymond Cauchetier, definem uma memória cinéfila em que a reportagem se cruza com os afectos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 março).
Eis uma imagem emblemática dos tempos heróicos da Nova Vaga francesa: Jean Seberg beija Jean-Paul Belmondo em cenário de rodagem de À Bout de Souffle (O Acossado), primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard. Ele exibe aquele misto de ingenuidade e fatalidade de quem refaz a iconografia clássica de Humphrey Bogart em tom parisiense. Ela é a musa redentora, ma non troppo, que vende o “New York Herald Tribune” nos Campos Elíseos (o nome do jornal está bordado na emblemática camisola de malha), desse modo impondo-se como ícone de um novo e amargo romantismo. Não por acaso, como muitas vezes acontece no cinema de Godard, há coisas para ler…
Estava-se em 1959. A fotografia pertence a uma fascinante galeria de momentos de rodagem de filmes que, em França, definiram novas formas de entender o cinema, desde logo a partir da sua fabricação — no mesmo ano, recorde-se, surgiram os também fundamentais Os 400 Golpes, de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais.
Podemos associá-la a outros instantâneos com protagonistas da Nova Vaga. São imagens que se consolidaram como testemunhos em que o trabalho desenha o mapa da cinefilia e a história se confunde a mitologia. Exemplos? Godard a beijar Anna Karina durante a rodagem do seu filme seguinte, Uma Mulher É uma Mulher (1961); Jeanne Moreau, Henri Serre e Oskar Werner, protagonistas de uma utopia sem nome, a correr na ponte metálica de Jules e Jim (1962), de François Truffaut; outra vez Truffaut, a acender um cigarro a Françoise Dorléac, filmando La Peau Douce/Angústia (1964), talvez na zona de Lisboa, uma vez que uma parte do filme, coproduzido por António da Cunha Telles, foi rodado em Portugal… etc.
Uma Mulher É uma Mulher |
Jules e Jim |
La Peau Douce |
Para lá das afinidades geracionais e cinéfilas, estas fotografias têm como ponto comum a assinatura de Raymond Cauchetier. Divulgada há poucos dias, a notícia do seu falecimento (a 22 de fevereiro, contava 101 anos) suscita uma revisitação apaixonada desses momentos que, de facto, são indissociáveis das imagens — e do imaginário — dos filmes que fizeram a Nova Vaga francesa, porventura o movimento com mais profundas e duradouras influências em cinematografias de todo o mundo.
O envolvimento de Cauchetier com a Nova Vaga — iniciado, precisamente, com À Bout de Souffle, a convite de Godard — é apenas um dos capítulos de uma existência em que as dificuldades materiais da infância e juventude (foi criado pela mãe, sem nunca ter conhecido o pai) se combinam com um genuíno espírito de aventureiro. Integrou a Resistência durante a ocupação alemã da França, tendo começado a fotografar na Indochina, enquanto elemento da Força Aérea francesa.
Raymond Cauchetier |
As fotografias de À Bout de Souffle e dos outros filmes da época resultam de um olhar em constante adaptação ao imponderável dos acontecimentos. Nessa medida, reflectem o espírito criador dos próprios filmes, distantes das regras tradicionais do trabalho de estúdio, assumindo as consequências das variações da luz e da imprevisibilidade dos lugares e das gentes.
Até aí, pode dizer-se que os actores e actrizes do cinema francês eram fotografados de duas maneiras: no final de cada plano de filmagem, num registo automático de “duplicação” da cena registada; ou em poses de riquíssima elaboração formal, cujo modelo de referência era o trabalho dos estúdios Harcourt (sempre activos, entenda-se, e continuando a produzir magníficos retratos). Através do trabalho de Cauchetier, a foto de rodagem passou a integrar a volatilidade dos momentos, cruzando a objectividade da reportagem com a cumplicidade dos afectos. Foi uma tarefa breve — Cauchetier abandonou o mundo do cinema em 1968, desiludido com os baixos salários de um fotógrafo de cena —, mas a sua sedução persiste, ampliada pelas camadas do tempo.