sábado, abril 24, 2021

Este (não) é o meu corpo

Robert Downey Jr. em pose de Homem de Ferro:
envolvido em metal, o actor deixou de ser determinante

De que falamos quando falamos do corpo? A pergunta é antiga, mas adquiriu uma perturbante actualidade, uma vez que somos agora tentados a distinguir um corpo de outro apenas pela presença ou ausência do vírus — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 março).

A urgência dos nossos dramas sanitários faz-nos viver as imagens e o imaginário dos nossos corpos num torpor, individual e colectivo, pontuado pelo medo. Temos medo e passámos a distinguir os nossos corpos a partir de uma dicotomia radical: a presença ou a ausência do vírus. Tempos difíceis para qualquer desejo de romantismo. Talvez por isso, as ficções virtuais que consumimos oscilam entre a abstracção pueril e a contundência do realismo.
No primeiro caso, encontramos séries como The Crown — a realeza persiste como pano de fundo de um imaginário de fábula em que os corpos são, ingenuamente, intermutáveis: primeiro a rainha, agora a princesa, enfim, todos podem trocar de intérpretes porque, de facto, já não há personagens, apenas marionetas congeladas numa novela caucionada pela “história”. Exemplo da segunda variante é o admirável filme do húngaro Kornél Mundruczó, Pieces of a Woman, obviamente (e justificadamente) reconhecido como peça de exaltação das singularidades do feminino, mas sem que isso o impeça de consumar uma metódica desmontagem do imaginário tradicional da maternidade.
É no futebol que encontramos uma das mais curiosas manifestações do empobrecimento das nossas linguagens sobre o corpo. Assim, há uma espécie de pudor que impede o reconhecimento simples de que uma equipa joga mal, optando-se por uma derivação fisiológica: estão a jogar mais com o “coração” do que com a “cabeça”… O “coração”, órgão mítico da verdade de todas as paixões (até mesmo no Big Brother televisivo), passa a ser definido como instrumento de erro.
De que falamos, então, quando falamos do corpo? Há muito tempo (ou talvez não, depende das medidas de cada um), Eduardo Prado Coelho reflectia sobre os ecos díspares de tal interrogação. Celebrava ele o efeito de libertação dos discursos gerado pelo 25 de Abril de 1974, definindo um programa de trabalho que seria sempre, em última instância, colectivo: “Recensear as palavras rasuradas em cortes de jornais, em discursos públicos, em conversas calafetadas, em legendas de jornais.” E acrescentava um breve inventário de algumas dessas palavras: “comunista, fascista, luta de classes, orgasmo, virgem, censura…”
São citações extraídas de um texto com data de 14 de Maio de 1974 (ainda escrevíamos os meses com maiúscula…), servindo de introdução à edição portuguesa de O Prazer do Texto, de Roland Barthes (Edições 70). São palavras que não podem ser deslocadas de um contexto muito específico em que a energia da palavra escrita ainda não se confrontava com o império de imagens, multifacetado, contraditório e global, que hoje habitamos enquanto espectadores permanentes dos nossos ecrãs de televisão, computador ou telemóvel.
Eduardo Prado Coelho convoca o leitor para lidar com Barthes, não como mensageiro de uma qualquer verdade definitiva, antes como hipótese de interrogação do ilusório naturalismo do mundo. A começar pelo enigma do corpo. Ou de acordo com as palavras cristalinas de Barthes: “O prazer do texto é o momento em que o meu corpo vai seguir as suas próprias ideias — pois o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu.”
A herança de Barthes adquire uma actualidade tanto maior quanto podemos observar que a reconfiguração (digital) dos corpos se tornou uma lei de encenação num espaço audiovisual — as aventuras de super-heróis — que, nos últimos vinte anos, passou a dominar o mercado global das imagens. Aí, quase sempre de forma automática, o corpo é tratado como peça figurativa que pode ser reconvertida em qualquer formato. Consequência prática? A banalização do trabalho do actor, reconhecido apenas como auxiliar de um ritual em que o seu corpo é festivamente desvalorizado.
Lembremos apenas o caso de um actor tão talentoso como Robert Downey Jr., notável, por exemplo, em Zodiac (2007), de David Fincher. Ao assumir a personagem do Homem de Ferro (cujo primeiro título surgiu em 2008), o seu corpo foi, literalmente, envolvido em metal, pouco mais lhe exigindo do que uma pose de crescente banalidade dramática. Numa civilização como a nossa, marcada pelo poder transfigurador da palavra (“este é o meu corpo”), tal banalização dá que pensar. Com a cabeça e o coração.