domingo, março 14, 2021

"A Sun"
— ou "a luz do sul ilumina tudo"

Chien-Ho Wu

Eis uma bela revelação do streaming: A Son é uma subtil saga familiar que, em representação de Taiwan, se está a destacar na corrida para o Oscar de melhor filme internacional — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 fevereiro), com o título 'As famílias não são todas iguais'.

Continua a saga dos títulos não traduzidos. Agora é a vez de uma produção de Taiwan, disponível em streaming (Netflix), que surge identificada apenas pelo título internacional: A Sun. Não viria grande mal ao mundo se se acrescentasse a tradução literal, “Um sol”, aliás suficientemente austera para ser sugestiva. E não creio que fosse muito difícil procurar a tradução literal do original que, segundo informações disponíveis na página da Wikipedia dedicada ao filme, será “A luz do sol ilumina tudo”.
O problema não envolve qualquer “pureza” intocável da língua. Aliás, repare-se: já não falamos de filmes difundidos por meios digitais… mas de streaming! A integração de palavras e expressões de outras línguas constitui um dos sinais mais rotineiros do mundo realmente global em que vivemos. O problema é de atenção (ou desatenção) aos “conteúdos” que se difundem, a ponto de os baralhar numa homogeneidade promocional que recalca as suas especificidades. Mais do que a identificação artística, está em jogo a valorização comercial!
Exemplo? A Sun, justamente. Acontece que esta realização de Chung Mong-hong integra a lista de 15 títulos que podem chegar às cinco nomeações para o Oscar de melhor filme internacional (ex-melhor filme em língua estrangeira). Salvo erro, não há qualquer referência a tal facto na página do filme online… E talvez seja bom referir que a importância de tal condição não resulta de nenhum “palpite” formulado deste lado do Atlântico. Assim, por exemplo, na sua lista dos “melhores filmes de 2020”, Peter Debruge, do Variety (8 dez.), coloca A Sun em nº 1; por sua vez, na introdução a uma entrevista com Chung Mong-hong, publicada em The Hollywood Reporter (2 fev.), Patrick Brzeski define o filme como o mais inesperado “favorito” ao Óscar de melhor filme internacional.

Entre pais e filhos

Enfim, face a um objecto tão rico de contrastes e nuances, não simplifiquemos. A simples tradução do título internacional também nos faria perder uma sugestão muito fácil de perceber (mesmo para quem não viu o filme): a pronúncia de A Sun confunde-se com a sonoridade de “A Son” (“Um filho”), facto que, como refere o realizador na citada entrevista, resultou de uma escolha muito consciente.
Esta é uma história que envolve um sistema de laços familiares em que a relação entre pais e filhos está ferida por um drama difícil de superar. Tentando evitar revelar as muitas peripécias que vão encaminhando A Sun para convulsões tão inesperadas quanto perturbantes, lembremos apenas duas componentes da sua “intriga”. Assim, tudo se desencadeia a partir de um acto violento, exposto de forma contundente na cena de abertura, que faz com que o jovem A-Ho (Chien-Ho Wu) seja condenado a três anos de reclusão numa instituição para jovens delinquentes; a partir daí, o pai, A-Wen (Yi-wen Chen), instrutor veterano de uma escola de condução automóvel, recusa-se mesmo a nomear A-Ho, dizendo que tem apenas “um filho”, referindo-se a A-Hao (Greg Han Su), irmão mais velho de A-Ho que se tem mantido um estudante exemplar…
Há uma lição pedagógica (antes de ser cinematográfica) que vale a pena referir a propósito de A Sun. Aqui está, de facto, uma narrativa que não depende dessa ilusão mediática, frequente em diversas formas de “entretenimento” televisivo, que leva a supor que a família é uma matriz universal que, com ligeiros sobressaltos, se repete de sociedade em sociedade… Ora, o minucioso trabalho de mise en scène de Chung Mong-hong decorre de uma perspectiva bem diferente: sim, é verdade que este é um filme recheado de factos e emoções com que nos podemos relacionar, ainda que tal efeito nasça da metódica exposição de singularidades sociais e culturais que não é possível rasurar.
Nesta perspectiva, é francamente precipitado que, na sua página online, A Sun surja classificado através de dois “géneros”: “filmes taiwaneses” e “filmes chineses”. Para lá da complexidade histórica das relações com a República Popular da China, tais rótulos escamoteiam o facto de existir um cinema de Taiwan com identidade própria e autores tão originais como Hou Hsiao-hsien, Tsai Ming-liang, Edward Yang ou, o mais internacional de todos, Ang Lee.

Memórias do século XI

Chung Mong-hong é também um talentoso director de fotografia, tarefa que, aliás, acumula com a realização de A Sun (assinando com o pseudónimo Nagao Nakashima). Utilizando as hiper-sofisticadas câmaras Arri Alexa, ele dá-nos a ver rostos, corpos e ambientes através de um subtil tratamento de luz e cor que, em última instância, nos projecta num envolvente paradoxo: por um lado, há uma espécie de naturalismo sensual que banha todas as situações, como se um qualquer “destino” impedisse que as coisas acontecessem de outra maneira; por outro lado, gestos, palavras e silêncios vão instalando a sensação de que cada personagem, ao lidar com os segredos dos outros, depara com o seus próprios enigmas.
É especialmente sugestivo que, nas aulas de A-Hao surja uma referência a Sima Guang, escritor e político chinês do século XI. A evocação de uma das suas parábolas condensa, afinal, o tema mais universal de A Sun: cada um existe através de um processo de infinita auto-descoberta, nessa medida podendo compreender também as diferenças dos outros.