Marilyn Monroe em Os Inadaptados: filmada por John Huston, a partir de um argumento escrito por Arthur Miller |
Foi há 60 anos que se estreou Os Inadaptados, o último filme concluído por Marilyn Monroe. Contracenando com Clark Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach, ela vivia, afinal, uma aventura que, em Hollywood, simbolizou o fim de uma época — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 janeiro).
Cena admirável, fotografada a preto branco por esse génio das imagens cinematográficas que foi Russell Metty: algures, no deserto do Nevada, próximo da cidade de Reno, na zona Oeste dos EUA, três homens perseguem um grupo de “mustangs”, cavalos selvagens que irão vender às fábricas que produzem embalagens de carne para cães. Revoltada, Roslyn, a mulher que os acompanha, afasta-se a correr e grita: “Assassinos da cavalos! Assassinos! Criminosos! Vocês são uns mentirosos! Todos, mentirosos! Só se sentem felizes quando conseguem ver alguma coisa a morrer! Porque é que não se matam para se sentirem felizes? Vocês e o país do vosso deus! Liberdade! Tenho pena de vocês! Três homens queridos, doces e mortos!”
Os homens são Clark Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach. Roslyn é interpretada por Marilyn Monroe. O filme, Os Inadaptados (título original: The Misfits), cumpre agora uma daquelas efemérides redondas com que, com maior ou menor felicidade, esboçamos uma significação harmoniosa para as nossas memórias: a primeira projecção pública de Os Inadaptados teve lugar no dia 31 de janeiro de 1961, numa sala de Reno, faz hoje 60 anos (a estreia nacional ocorreu no dia seguinte).
Realizado por John Huston, com argumento de Arthur Miller, então casado com Marilyn, Os Inadaptados entrou na mitologia de Hollywood — e, em boa verdade, da história global dos filmes — como símbolo do fim de uma época. E bastará citar dois títulos do mesmo ano para reconhecermos as mudanças que estavam a refazer todo o mapa do cinema: é também em 1961 que surgem West Side Story, o musical de Robert Wise e Jerome Robbins que viria a ser o grande vencedor dos Oscars, e O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, modelo lendário do experimentalismo que marcava a mais fascinante produção francesa.
O cinema vivia um tempo pontuado pela emergência das “novas vagas” (França, Brasil, Portugal, etc.) que, racionalmente ou não, envolvia algumas dramáticas despedidas. Na história de Os Inadaptados, há, aliás, um luto que acompanhou o próprio lançamento do filme: Clark Gable já não assistiu à estreia, tendo falecido, vítima de ataque cardíaco, a 16 de novembro de 1960, dez dias depois da conclusão da rodagem — na data da estreia, 1 de fevereiro de 1961, completaria 60 anos.
Para Marilyn, seria o derradeiro filme concluído, tendo ainda participado na rodagem de Something’s Got to Give, contracenando com Dean Martin e Cyd Charisse, sob a direcção de George Cukor, título para sempre interrompido pela sua morte, vítima de “overdose” de barbitúricos, a 5 de agosto de 1962, contava 36 anos. Todos os testemunhos sobre as filmagens de Os Inadaptados referem a instabilidade do seu comportamento. No livro de memórias Timebends - A Life (1987), Miller recorda a sua dependência de drogas para adormecer, e também para se manter acordada, combinada com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
Há uma ironia cruel em tudo isto, quanto mais não seja porque a epopeia amarga de Os Inadaptados, uma espécie de “western” virado do avesso, vive da metódica atenção com que Huston sabe olhar os seus magníficos intérpretes. O próprio Montgomery Clift, por certo um dos actores mais admiráveis de toda a história de Hollywood, teria um fim prematuro: participou em mais três filmes, incluindo Freud, Além da Alma (1962), também sob a direcção de Huston, vindo a falecer em 1966, contava 45 anos.
No coração de Os Inadaptados está o argumento escrito por Miller, ele que viveu a rodagem em estado de crescente abandono (o divórcio de Marilyn seria consumado poucos dias antes da estreia do filme), como se a metáfora do deserto se fizesse vida. Recordando os dias vividos no Nevada, escreveu ele, em Timebends: “Um homem senta-se à máquina de escrever com uma folha branca em que coloca palavras descrevendo imagens, a certa altura olha à sua volta e descobre umas quatrocentas ou quinhentas pessoas, camiões e vagões de comida, aviões, cavalos, hotéis, estradas, automóveis, luzes, tudo coisas que de alguma maneira, agora inacessível na sua complexidade, ele convocou do nada e de lugar nenhum. Estranhamente, descobre-se sem grande poder sobre os resultados da sua imaginação; seguem o seu próprio caminho sem a mais ligeira consciência de que a sua actual encarnação se deve a ele.”