terça-feira, fevereiro 02, 2021

De Joe Biden a Abraham Lincoln

[ 1939 ]

As imagens da tomada de posse de Joe Biden conduzem-nos a memórias do cinema de Hollywood em que os contrastes do poder político ecoam de modo especialmente sensível. E deparamos com a figura tutelar de Abraham Lincoln filmada por John Ford — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 janeiro), com o título 'Abraham Lincoln e o valor das palavras'.

No seu programa The Tonight Show (NBC), ao comentar algumas imagens da tomada de posse de Joe Biden, Jimmy Fallon referiu-se ao gesto tradicional do novo presidente, colocando a mão esquerda sobre a Bíblia, neste caso numa edição de dimensões francamente invulgares: “Biden fez o seu juramento com uma Bíblia gigante que pertence à sua família desde 1893.” Depois de apresentar um plano aproximado do livro, seguro por Jill Biden, observou: “Aquilo não é uma Bíblia que se encontre num armário. Aquilo é um armário”. Rematou mesmo dizendo que até o Papa terá considerado que “foi um bocadinho excessivo.”
Para lá do saudável humor, creio que vale a pena sublinhar a atenção que assim se presta, implicitamente, ao valor simbólico da palavra escrita. Tal chamada de atenção adquire especial pertinência num contexto em que, depois da invasão do Capitólio (lugar da própria tomada de posse), o valor referencial da Constituição dos EUA tem sido evocado por democratas e republicanos. Seja como for, claro que o poder inerente às palavras — o modo como, afinal, delimitam e sustentam a própria noção de real — nos remete para um património secular que excede, e muito, os eventos marcantes do dia 20 de janeiro de 2021.
Talvez possamos até considerar que, no cinema de Hollywood, a longa e riquíssima tradição de análise das mais diversas formas de poder decorre, entre outros factores, de uma atenção crítica ao valor da palavra e, nessa medida, ao funcionamento da escrita como elemento fulcral de consistência social. Escusado será dizer que a questão é tanto mais actual quanto os efeitos dominantes (não absolutos, mas dominantes) das redes que se auto-denominaram “sociais” arrastam a banalização da palavra através da proliferação fútil, tendencialmente irresponsável, das imagens.
Uma memória, exemplar entre todas, pode ajudar-nos a compreender como a dimensão política da questão sempre se cruzou com as narrativas dos filmes e o imaginário cinematográfico. Penso na obra-prima de John Ford, Young Mr. Lincoln (disponível no mercado do DVD, com o título A Grande Esperança), retrato de Abraham Lincoln, interpretado pelo admirável Henry Fonda. Acompanhamo-lo em 1837, 24 anos antes da sua tomada de posse como presidente: jovem advogado em Springfield, Illinois, assume o seu primeiro caso de tribunal defendendo dois irmãos acusados do assassinato de um homem durante as comemorações do Dia da Independência.
O filme surgiu em 1939, num contexto que todas as histórias do cinema apontam como decisivo para a depuração narrativa e a consolidação técnica do sistema de Hollywood, depois da generalização do sonoro. Para nos ficarmos pelas referências mais emblemáticas, lembremos que esse é o ano em que são lançados títulos como E Tudo o Vento Levou e O Feiticeiro de Oz (ambos de Victor Fleming), Peço a Palavra (Frank Capra), Ninotchka (Ernst Lubitsch) e O Monte dos Vendavais (William Wyler).
A definição da personagem de Lincoln envolve, em tudo e por tudo, uma particular atenção à densidade de sentidos e significações que as palavras podem transportar. Porque, obviamente, as intervenções no espaço do tribunal implicam um uso devidamente ponderado de tudo o que é dito. E também porque, através do olhar de Ford, a iconografia de Lincoln surge pontuada por uma relação carinhosa com os livros (a ponto de um dos cartazes da época o apresentar em pose de leitor).
O admirável Lincoln (2012), de Steven Spielberg, com Daniel Day-Lewis, é um descendente directo do filme de Ford. Em qualquer caso, a relação de um certo cinema americano, “antigo” ou “moderno”, com os muitos contrastes das palavras e respectivos usos excede as temáticas específicas da política, ligando-se em particular com o domínio do jornalismo. Recordemos o notável exemplo de Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, sobre a investigação de Bob Woodward e Carl Bernstein, jornalistas de The Washington Post, que conduziria à queda de Richard Nixon. Sendo um filme sobre as ilegalidades da administração de Nixon, é também um conto moral sobre a justeza das palavras jornalísticas.