terça-feira, janeiro 12, 2021

Torre Bela, aqui e agora

Torre Bela (1975), filme de Thomas Harlan

As imagens da herdade de Torre Bela cruzam-se no nosso imaginário e na nossa imaginação: somos incautos viajantes no tempo, num ziguezague entre o actual massacre de 540 animais e as convulsões do Verão Quente de 1975 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 janeiro). 

A imagem possui aquele grão, irregular e frágil, de uma memória de várias décadas. O fotograma pertence a Torre Bela, documentário realizado pelo alemão Thomas Harlan, entre março e dezembro de 1975, testemunhando a ocupação da herdade ribatejana da Torre Bela pelos seus trabalhadores. Os protagonistas são um camponês que não aceita que o seu instrumento pessoal de trabalho possa ser encarado como sendo “da cooperativa” e Wilson Filipe, de alcunha Sabu, tentando demonstrar-lhe que estão todos a viver um “processo” capaz de pôr fim à “tua vida de escravo”.


São memórias históricas com o seu quê de assombramento, quanto mais não seja porque Torre Bela, exemplo admirável de um registo histórico a quente, contundente e contraditório, continua a ser um filme marginal no imaginário cinéfilo português — para lá das muitas projecções em “sessões especiais”, só em 2007 teve um breve período de exibição no circuito comercial. 
São também memórias que, recentemente, circularam como uma espécie de fantasma cultural, porventura impossível de reconhecer. Por duas razões: primeiro, porque os cenários de Torre Bela voltaram a ser objecto de exposição no espaço mediático, agora por causa de uma montaria que se traduziu no massacre de 540 animais; depois, porque Wilson Filipe faleceu na véspera de Natal, na Azambuja, contava 72 anos. 
Há uma lição amarga a pontuar tudo isto. Entenda-se: lição sobre a fragilidade da nossa cultura cinematográfica e a sua débil presença no imaginário social, muito aquém do domínio avassalador de outras formas de ficção (telenovela) e outros eventos colectivos (futebol). Acontece que Wilson Filipe é também um genuíno símbolo cinematográfico, no sentido em que foi no cinema, através do filme de Harlan, que a sua militância em Torre Bela, durante o nosso Verão Quente, encontrou a sua cristalização mitológica. 
Chegado aqui, o leitor mais precipitado, ou apenas menos paciente, está à beira de desistir, não podendo tolerar aquilo que lhe parece ser uma “santificação” de Wilson Filipe. E não o censuro por isso — a vitalidade da democracia nem sempre tem sabido evitar que pensemos o 25 de abril de 1974 a partir de dicotomias pueris, por vezes sem nos darmos conta que estamos a transmitir tal vício ideológico às novas gerações. 
O cinema português, também ele tantas vezes mal conhecido, gerou matérias que nos podem ajudar a lidar com tão complexa herança. Falo de quê? Pois bem, desse filme admirável que é Linha Vermelha (2012), de José Filipe Costa, precisamente sobre as memórias dos que, em 1975, viveram as convulsões de Torre Bela. Aliás, importa precisar: Linha Vermelha não é uma evocação “directa” desses factos, mas sim uma investigação sobre as condições materiais em que nasceu o filme Torre Bela. 
Dito de modo simples, inevitavelmente simplificador, Linha Vermelha segue uma lógica de fria demonstração: através da revisitação de imagens e sons de Torre Bela, compreendemos que todo o aparato político que se viveu na propriedade (incluindo uma “visita de apoio” de elementos do MFA) não pode ser dissociado de elaborados mecanismos de encenação, teatralização e manipulação. De tal modo que somos levados a reconhecer que, em determinadas circunstâncias, uma câmara de filmar (cinematográfica ou televisiva) pode funcionar menos como um instrumento de “registo” e mais como um “provocador” de acções. 
Quem nos conduz nessa descoberta das linguagens que envolvem imagens e sons? O próprio Wilson Filipe, entrevistado no filme de José Filipe Costa, recordando como viveu, encenou e, de alguma maneira, foi encenado nos cenários agitados de Torre Bela — ele que, sem ironia, confessa que chegou a alimentar a ideia de se tornar actor profissional. Agora, face à obscenidade das imagens de 540 animais mortos, não há soluções mágicas para lidar com tantas formas de desencanto. Na certeza de que o desencanto faz parte da demanda de felicidade.