segunda-feira, janeiro 04, 2021

Mulher Maravilha repete rotinas
de super-heróis masculinos

Eis um acontecimento que ficará para a história cinematográfica do ano de 2020: apesar de todos os condicionalismos impostos pela pandemia, Mulher Maravilha 1984 acabou por estrear-se nas salas escuras. Pena é que, em termos cinematográficos, os resultados sejam tão rotineiros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 dezembro). 

Sequelas? Podemos defini-las como um cruzamento perverso do cinema contemporâneo, sobretudo da grande máquina industrial de Hollywood: a estratégia de marketing tenta associar-se à reinvenção artística para continuar a alimentar o mercado global. Simples, não é? Infelizmente, como se prova pelo novo Mulher Maravilha 1984, de uma simplicidade cada vez mais rotineira e monótona.
E, no entanto, há que dizer que Mulher Maravilha 1984 vai ficar na história deste atribulado ano de 2020 como uma referência incontornável. Entre os muitos e dramáticos problemas enfrentados pelos mercados cinematográficos — com especificidades nacionais que não podem ser dissolvidas num qualquer resumo “global” —, a ausência de “blockbusters” americanos fica como um dado fulcral. Desde logo, por uma perversa razão que, escusado será lembrá-lo, não decorre do facto de cada filme ser “melhor” ou “pior”: acontece que muitos sistemas de distribuição e exibição (nacionais, precisamente) foram em grande parte construídos de forma unívoca, comercialmente pouco ágil, dependendo por completo desse tipo de produtos. 
Mulher Maravilha 1984
fica como a excepção que confirma a regra, cerca de quatro meses passados sobre o lançamento de Tenet, de Christopher Nolan (esse, sim, um belo exercício cinematográfico). Assim, os estúdios Warner não quiseram desistir de colocar o filme nas salas escuras — em particular na grandiosidade física dos ecrãs IMAX —, fazendo valer um princípio, também simples, mas essencial, segundo o qual a verdade espectacular e emocional de um espectáculo cinematográfico não pode prescindir das singularidades dessas clássicas salas escuras. 
É pena que os resultados reflictam um aproveitamento tão banal dos imensos recursos postos à disposição de uma produção deste género. A lógica de sequela enraíza-se, aliás, num entendimento estritamente financeiro das potencialidades de tais recursos. Dito de outro modo: Mulher Maravilha 1984 nasce do sucesso de Mulher Maravilha (2017), repetindo a colaboração entre a realizadora Patty Jenkins e a actriz Gal Gadot. 
É bem verdade que o filme arranca com uma sequência sugestiva, ainda que repetindo o modelo do filme anterior. Nela reencontramos Diana Prince, futura Mulher Maravilha, ainda criança, apostada em concorrer com as proezas das outras mulheres do seu reino de amazonas. São momentos visualmente curiosos, em particular pelo modo como conciliam as paisagens naturais com os efeitos digitais. São também pistas para uma possível abordagem lendária de uma figura pertencente a um universo divino, em tudo e por tudo ligada a matrizes mitológicas
[ DC Comics ]
Infelizmente, o filme rapidamente se satisfaz com a triste imitação das produções mais medíocres que têm sido feitas em torno de figuras masculinas dotadas de super-poderes. A própria colocação da acção no ano de 1984 (tempos de Guerra Fria, como lembra alguma promoção…) acaba por ser um dado irrevelavante, a não ser para alguma utilização pitoresca do guarda-roupa. E não parece ser grande proeza feminina (ainda menos feminista) fabricar espectáculos com mulheres que se vão esgotando na cópia do pior que se vai fazendo com homens. 
As consequências de tudo isto são, também elas, “tradicionais”. Por um lado, assistimos a uma saturação de efeitos digitais mais ou menos estereotipados e previsíveis, dir-se-ia reciclados de um filme para o outro (o que, provavelmente, acontece…). Por outro lado, a concepção das personagens é de tal modo esquemática que chega a ser penoso assistir aos desastres de interpretação que isso provoca; nesta perspectiva, a composição de Pedro Pascal como Maxwell Lord (o vilão que quer tomar conta do mundo através de uma “máquina” de satisfação de desejos…) tem qualquer coisa de patético, de tal modo o actor se entrega a um delírio histriónico de equivocado amador.
Há em tudo isto um claro desentendimento do que sejam as maravilhas possíveis do cinema. Por alguma razão, há alguns anos, Steven Spielberg chamava a atenção para as ameaças de “implosão” que o cinema americano estava (e está) a enfrentar. Não por causa do gosto da aventura ou dos prazeres do espectáculo — será necessário lembrar que Spielberg pertence, de alma e coração, a esse mesmo cinema? Acontece que face a uma produção de 200 milhões de dólares como este Mulher Maravilha 1984 fica a pergunta mais básica: para quê?