Julianne Moore, Safe (1995) |
Na longa metragem Safe/Seguro, de Todd Haynes, Julianne Moore interpreta uma dona de casa dos subúrbios de Los Angeles especialmente sensível a todos os produtos químicos; de grande actualidade simbólica, o filme tem data de 1995 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 dezembro).
Não será necessário possuir um conhecimento especializado, ainda menos enciclopédico, da história do cinema para reconhecer que, em todas as épocas, encontramos filmes que nos confrontam, por vezes de forma premonitória, com as mais diversas convulsões sociais, ideológicas e morais. Esta semana, por exemplo, chegaram às salas portuguesas dois títulos exemplares dessa dimensão visceralmente política, em tudo e por tudo alheia ao cliché do “filme político” (segundo o qual o cinema só faz política quando filma algum “militante” de uma “causa” a proferir um exaltado discurso de “propaganda”…).
American Utopia, objecto político, por excelência, é mesmo um filme musical. Entenda-se: uma celebração da música e dos seus poderes de encantamento e pensamento (uma coisa pressupõe e envolve a outra). Trata-se do sofisticado registo de um concerto de David Byrne, tendo por base as canções do seu álbum homónimo, maravilhosa reflexão sobre o ser (ou não ser) americano. A realização é de Spike Lee, cineasta em nada estranho aos poderes narrativos da música, com colaborações regulares com o compositor Terence Blanchard e até com um belo filme, Mo’ Better Blues (1990), sobre um trompetista de jazz, interpretado por Denzel Washington.
O caso de O Mal Não Existe é bem diferente, quanto mais não seja porque se apresenta enquadrado por factos políticos muito concretos: o seu autor, o iraniano Mohammad Rasoulof, foi condenado por “propaganda contra o sistema” e proibido de filmar pelas autoridades do seu país. O certo é que tem conseguido continuar a trabalhar, sendo O Mal Não Existe um admirável libelo contra a pena de morte no Irão — foi também o grande vencedor (Urso de Ouro) do Festival de Berlim realizado em fevereiro.
O menosprezo corrente, mediaticamente muito poderoso, pela vocação social do cinema sugere que “tais” filmes não passam de divagações inconsequentes de, e para, “intelectuais”. Tal sugestão é apenas um pormenor no interior de um aparato de comunicação que tende a reduzir o cinema a um “entretenimento” pueril, alheio a qualquer forma de entendimento do mundo — como se os filmes dos estúdios Marvel (incluindo os mais brilhantes) fossem placebos ideológicos…
No recentíssimo A Pandemia que Abalou o Mundo (ed. Relógio D’Água, 2020), livro com tanto de discutível como de fascinante, Slavoj Zizek chama a atenção para o carácter orgânico das vidas humanas — dos vírus à forma de organização da economia —, sublinhando o valor primordial da solidariedade: “Um lugar-comum agora em circulação é que, uma vez que estamos todos nesta crise, devemos esquecer a política e limitar-nos a trabalhar em uníssono para nos salvarmos. Esta ideia é falsa: é agora que precisamos de verdadeira política — as decisões sobre solidariedade são eminentemente políticas.”
Quem sou face ao outro? Como é que os gestos pessoais determinam o funcionamento do colectivo? Se recuarmos um quarto de século, podemos encontrar estas perguntas no filme Safe (1995), de Todd Haynes, subtil retrato do medo face às possibilidades de contaminação do corpo (entre nós lançado como Seguro).
A sua actualidade é perturbante. A segurança a que o título alude decorre da crescente vulnerabilidade de Carol White (notável Julianne Moore), dona de casa dos subúrbios de Los Angeles, sempre ameaçada pelos mais diversos produtos químicos. De tal modo que um qualquer sobressalto — por exemplo, nessa cena incrível, num cabeleireiro, em que Carol começa a deitar sangue pelo nariz — adquire a energia de um pesadelo vivido em tom realista.
A entrada de Carol numa espécie de retiro para pessoas com o mesmo tipo de sintomas ou alergias surge, assim, marcada por uma inquietante ambivalência: por um lado, a clausura parece garantir a adequada distância (segura, precisamente) em relação aos perigos da vida em sociedade; por outro lado, a lógica de “purificação” da sua nova existência, para mais num ambiente que tem qualquer coisa de seita religiosa, põe em causa a própria viabilidade do conceito de sociedade. Enfim, vale a pena não esquecer que o cinema é uma nobre arte humana, não uma colecção descartável de monstros ruidosos fabricados por meios digitais.