quarta-feira, novembro 18, 2020

Kellyanne Conway, Donald Trump
e os factos alternativos

Kellyanne Conway [BBC]
Foi em 2017, numa entrevista televisiva, que Kellyanne Conway pôs a circular a noção de “factos alternativos”. Depois de quatro anos de presidência de Donald Trump, compreendemos que as suas palavras não tinham nada de anedótico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Novembro). 

Provavelmente, Donald Trump tem alguma razão: as “fake news” não são um simples sobressalto na dicotomia verdade/mentira, mas um modo de viver e representar o mundo. Existem como uma espécie de magma que vai deslizando pelas certezas da nossa racionalidade, paralisando as matérias vitais do pensamento, determinando os nossos comportamentos, viciando o nosso imaginário, toldando a nossa imaginação. 
A resistência de Trump a reconhecer a vitória de Joe Biden seria um absurdo que a mais básica lógica cognitiva conseguiria desmontar e, em princípio, superar. Não é isso que está a acontecer. Entrámos no cenário de um perverso jogo de espelhos: agora, Trump é o produtor de “fake news”. 
Vemos, por exemplo, os esforços diários de entidades como a CNN para manter os valores da mais ancestral deontologia jornalística, denunciando insinuações e múltiplas mentiras de Trump. Nem assim conseguimos suprimir a sensação de um permanente ataque de pânico (nosso, não dele). 
Podemos até especular sobre os mecanismos de negação de Trump, reconhecendo a ferida narcisista que tais mecanismos parecem reflectir. Seja como for, nenhuma “psicanálise” de bolso pode auxiliar a nossa vontade de compreender. Como se ele tivesse conquistado uma posição capaz de transcender a própria noção de realidade: Trump encena e protagoniza uma tragicomédia que, de tão “fake”, já não o afecta. 
Vale a pena revermos (e escutarmos) as imagens de Kellyanne Conway quando, a 22 de janeiro de 2017, introduziu na história política e mediática a expressão “factos alternativos”. A conselheira do Presidente Trump dava uma entrevista a Chuck Todd, no programa Meet the Press (NBC): ao ser questionada sobre o facto de Sean Spicer, porta-voz da Casa Branca, ter dado informações falsas sobre o número de pessoas que acompanharam a tomada de posse de Trump, Conway disse que Spicer se tinha limitado a dar conta de “factos alternativos”…


Quase quatro anos depois, podemos tentar outra maneira de dizer isto: Donald Trump talvez não nos tenha enganado com os seus “factos alternativos”, mas conseguiu fazer prevalecer um novo cânone comunicacional em que qualquer facto já não existe, nem subsiste, como entidade factual (a redundância é inevitável). A nova regra é: qualquer facto está aberto a alguma “alternativa”. 
Nesta perspectiva, vale também a pena relembrar o seu passado como protagonista e mentor de The Apprentice (NBC, 2004-2015), um concurso de “reality TV” em que Trump desempenhava o papel de apresentador e avaliador de participantes cuja missão consistia em montar um determinado negócio (uma indústria de brinquedos, uma fábrica de gelados, uma linha de moda, etc.). Antes de ser Presidente dos EUA, Trump era mesmo conhecido do povo americano como aquele que geria tal programa, eliminando os concorrentes que não conseguiam obter lucros com uma frase contundente: “Está despedido.” 
Em boa verdade, a “reality TV” é tão só uma indústria de produção de “factos alternativos”, de tal modo poderosa e abrangente que conseguiu entorpecer a nossa disponibilidade para, como simples cidadãos, pararmos para reflectir nas mensagens audiovisuais que recebemos todos os dias. Há efeitos emocionais de compensação para a nossa inacção, nomeadamente através do futebol, com a consagração do video-árbitro: o planeta desportivo foi invadido por infinitas polémicas sobre o fora de jogo marcado porque há um pé colocado 3 cm à frente de um joelho… mas, mesmo depois de quatro anos de Trump a ocupar o cargo de “homem mais poderoso do mundo”, ninguém arrisca uma pausa para, pelo menos, identificar as raízes televisivas do seu poder. 
Infelizmente, a simples formulação de tal hipótese depara quase sempre com a resistência dos que não admitem que se ponha em causa a idoneidade do continente televisivo. Ora, a questão é bem diferente: a televisão existe como um sistema de linguagens de tal modo rico e fascinante que não faz sentido alhearmo-nos da sua apropriação por discursos “alternativos” que nos tratam como cobaias de entretenimento. Seria também interessante que os políticos, tão necessariamente presentes no espaço televisivo, nos ajudassem nessa reflexão.