terça-feira, junho 02, 2020

Elsa Dorfman (1937 - 2020)

As suas Polaroids gigantes conferem-lhe um lugar à parte na história da fotografia e, em particular, na iconografia do retrato: a americana Elsa Dorfman faleceu no dia 30 de Maio, na sua casa de Cambridge, Massachusetts, devido a problemas renais — contava 83 anos.

>>> A história pessoal e a produção artística de Dorfman são indissociáveis de dois vectores fundamentais: primeiro, o seu envolvimento com a Geração Beat; depois, o fascínio (e a prática) dos formatos gigantes da Polaroid. O notável documentário que Errol Morris lhe dedicou, The B-Side: Elsa Dorfman’s Portrait Photography (2016), permite-nos descobrir as memórias, os sobressaltos e a energia criativa da sua trajectória — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Maio).

Ah! Esse misto de nostalgia e emoção que uma velha fotografia pode transportar! The B-Side: Elsa Dorfman’s Portrait Photography é, por certo, um dos mais maravilhosos filmes que, em anos recentes, se fizeram sobre memórias fotográficas, mais exactamente sobre as Polaroids gigantes de Elsa Dorfman (n. 1937). Estreado no Festival de Telluride (Colorado, EUA) em 2016, é um delicioso objecto de cinema que não tem tido grande visibilidade nos circuitos cinematográficos — agora, podemos descobri-lo (com o título original) na Netflix.
Importa sublinhar que estamos perante um trabalho de um dos grandes documentaristas contemporâneos, o americano Errol Morris, “oscarizado” em 2004 por The Fog of War, extraordinária evocação das presidências de John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson através do testemunho do seu secretário da Defesa, Robert McNamara.
Em qualquer caso, importa também acrescentar que a palavra “documentário”, sobretudo se considerada na sua acepção televisiva mais rotineira, está longe de poder caracterizar a riqueza e singularidade do olhar de Morris. Assim acontece em The B-Side, filme que tem tanto de auto-biografia da fascinante Dorfman (79 anos, na altura da rodagem) como de reflexão sobre o poder emocional das imagens.
Dorfman apresenta-se como essa “miúda judia com sorte” que, no começo da década de 1960, graças ao seu emprego na editora novaiorquina Grove Press, conheceu figuras emblemáticas da Geração Beat, acabando por criar um forte laço de amizade com Allen Ginsberg (1926-1997). A sua obra inclui mesmo imagens que se tornaram verdadeiros ícones da cultura popular — por exemplo, uma fotografia de Ginsberg a conversar com Bob Dylan, à guitarra, registada em 1975 —, a par de uma colecção imensa de auto-retratos que são outros tantos exercícios de delicada observação humana e, apetece dizer, humanista.
Allen Ginsberg
(15 Outobro 1988)
Em qualquer caso, é a sua experiência com as fotografias instantâneas da Polaroid que lhe confere um estatuto muito especial no interior da própria história da fotografia americana (e não só). Dorfman pertence a um pequeno “clube” de fotógrafos que, ao longo das últimas décadas, tem podido utilizar uma das gigantescas câmaras Polaroid que permite obter fotografias instantâneas de 20x24 polegadas (cerca de 50x60 centímetros). Segundo o seu próprio site, apenas existem oito dessas câmaras, disponíveis para aluguer, em todo o mundo. Dorfman tem sido uma das suas utilizadoras mais regulares e obsessivas, calculando que já fez mais de 4 mil retratos 20x24, ou da dimensão ainda mais rara de 23x36 (58x91 cm).
Resultado prático: Dorfman possui uma fascinante colecção de retratos de grandes dimensões, cuidadosamente guardados nas gavetas metálicas do seu arquivo onde, em boa verdade, decorre a maior parte do filme. Morris é um bom conversador, tanto mais eficaz quanto sabe que o protagonista não é ele — como cineasta, valoriza a observação e a escuta, coligindo, com um misto de curiosidade e pudor, as memórias e os “segredos” de Dorfman.
Desse labor de observação nasce o título do filme. The B-Side é uma referência irónica ao facto de Dorfman habitualmente fazer apenas duas provas dos seus retratos: a delicadeza do processo, e também o seu custo, assim o impõem. Daí que ela obtenha dois originais — “A” e “B” — que mostra aos retratados, dando-lhes a escolher aquele que vão levar consigo. Quase sempre, é escolhido o “A”; Dorfman conserva o “B” que, na sua opinião, também quase sempre, é o melhor. Dir-se-ia que a história da fotografia é também a história desses paradoxos.


>>> Obituário no New York Times.