O 39º álbum da discografia de Bob Dylan, Rough and Rowdy Days, prolonga de forma surpreendente as principais matrizes da sua obra, incluindo um gosto narrativo que não é estranho a algumas heranças cinematográficas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Maio).
O novíssimo álbum de Bob Dylan, Rough and Rowdy Ways, 39º da sua discografia, é um prodigioso objecto de liberdade. No sentido mais político e, por assim dizer, mais didáctico que a liberdade pode envolver. Entenda-se: nele encontramos um pouco de tudo o que define a sua obra, das raízes folk ao gosto pela metódica valorização das palavras; ao mesmo tempo, nenhum modelo ou matriz chega para o classificar, de tal modo o artista se expõe como aquele que se encena através da renovação das próprias máscaras que usa.
A primeira das canções a ser divulgada, no mês de março, Murder Most Foul, evoca o assassinato de John F. Kennedy (“um dia negro em Dallas, novembro 1963”) como um trauma nuclear da história moderna dos EUA. Daí as muitas referências aos agitados anos 60, dos Beatles a Woodstock. Não são banais sinalizações nostálgicas, antes chamas vivas da memória que, num misto de precisão e melancolia, nos fazem sentir o labor do passado como “coisa” que define o nosso presente.
Algumas dessas evocações transcendem a década de 60, desenhando uma espécie de mapa patrimonial que, sendo americano, possui uma forte dimensão universal. Escusado será lembrar que a obra de Dylan é também um testemunho modelar dessa dimensão. De Patsy Cline a muitos nomes do jazz — Charlie Parker, Thelonious Monk, Stan Getz, etc. —, Dylan convoca todos aqueles que marcaram a sua trajectória e, mais do que isso, inscreveram marcas indeléveis na identidade nacional. Não faltando derivações “estrangeiras”, incluindo na canção de abertura do álbum, titulada a partir de um verso de Walt Whitman, I Contain Multitudes: aí é citado um grupo de “bad boys” britânicos, isto é, os Rolling Stones.
Acedemos assim a uma sensação ou, se quiserem, uma sensibilidade eminentemente cinematográfica e cinéfila. Como se a corrente das palavras arrastasse consigo uma galeria de imagens que as canções integram e, de alguma maneira, relançam no nosso tempo. Desde logo porque, também nesse campo, as citações são muitas e variadas: Buster Keaton, Harold Lloyd, Marilyn Monroe… Algumas delas mais ou menos paródicas, como o verso “Frankly, Miss Scarlett, I don’t give a damn”, citando a fala final de Clark Gable em E Tudo o Vento Levou (1939), ou quase esotéricas, como acontece no verso anterior a esse — “Goodbye, Charlie, goodby Uncle Sam” —, lembrando o filme Goodbye Charlie (entre nós Quando Ela Era Ele), fantasia cómica de Vincente Minnelli, com Tony Curtis e Debbie Reynolds, uma produção de 1964.
Nada disto envolve qualquer pretensão enciclopedista. Se há uma expressão antiga, porventura ferida por alguma banalização mediática, mas capaz de sugerir a peculiar energia de Dylan, é a tradicional definição do trovador: contador de histórias. Seja através da pulsação épica de Murder Most Foul ou da tocante invocação de um lenda do blues, em Goodbye Jimmy Reed, cada referência reaparece e, num certo sentido, renasce como novo acontecimento pertencente a uma nova narrativa.
Em boa verdade, a história artística e mitológica de Dylan confunde-se com essa arte de narrador. No célebre documentário de D. A. Pennebaker, Dont Look Back (1967), entre nós lançado como Eu Sou Bob Dylan, víamo-lo como estrela relutante do mundo do espectáculo, na fase em que contrariou os lugarers-comuns da tradição, começando a usar guitarras eléctricas. Compelido e, afinal, obrigado a rechaçar a imagem de cantor “de mensagem” em que alguns jornalistas o queriam encerrar, vêmo-lo numa famosa sequência em que se mostra implacável a desmontar os pressupostos retóricos das perguntas de um repórter da revista Time.
Em Rough and Rowdy Days, encontramos mesmo canções que fazem lembrar algumas matrizes clássicas do cinema, em particular de natureza melodramática. Escute-se essa pérola que é I’ve made up my mind to give myself to you, que poderia ter lugar num musical dos anos 40 com chancela da Metro Goldwyn Mayer. Solicitando a indulgência do leitor, eis uma hesitante tradução da primeira quadra: “Sentado no meu terraço, perdido nas estrelas / Escutando os sons de guitarras tristes / A pensar muito e pensando melhor / Tomei a decisão de me entregar a ti.”