sexta-feira, abril 03, 2020

O corpo e o vírus
— Bertolucci, Kubrick e os outros

O Último Tango em Paris + De Olhos Bem Fechados
Numa conjuntura social dominada pelo covid-19, todos os domínios das relações humanas estão abertos a novas formas de ver e pensar. Incluindo a representação da sexualidade na história do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Março).

Há dias, Sanjay Gupta, neuro-cirurgião, comentador de temas de medicina e saúde pública na CNN, foi convidado de Stephen Colbert em “The Late Show” (CBS). O covid-19 foi tema único de conversa, tanto mais presente e premente quanto o programa tem sido gravado sem a tradicional audiência, apenas com alguns elementos da equipa de Colbert dispersos pela plateia do lendário Ed Sullivan Theater, na Broadway.
A certa altura, com aquela ironia televisiva que sabe manter uma relação viva com a actualidade social, Colbert questionou o seu convidado sobre a possibilidade de as pessoas continuarem a ter encontros amorosos [video]. Gupta começou por responder com o mais primitivo didactismo: “Creio que depende de quanto gostamos da outra pessoa.” Colbert insistiu: e se for um “encontro às cegas” (“blind date”)? Depois de uma ligeira pausa, sorriso nos lábios, Gupta rematou: “Não, encontros às cegas não.” E fez questão em sublinhar que aquilo que está em jogo excede os prós e contras de qualquer romantismo, nostálgico ou não: considerando que muitas acções humanas envolvem um cálculo entre “risco e gratificação”, referiu também que estamos a viver um “tempo diferente” em que sabemos da possibilidade de “o meu comportamento afectar dramaticamente a saúde do outro.”


Por automática associação lexical, lembrei-me da comédia que Blake Edwards realizou em 1987, cujo título original é, precisamente, Blind Date (entre nós, Encontro Inesquecível). Nela se encena a burlesca relação de Bruce Willis e Kim Basinger, ele um homem de negócios que pede ao irmão que lhe sugira uma companhia feminina para um importante jantar de negócios, ela uma jovem tímida com um segredo não muito adequado ao formalismo da situação: uma pequena quantidade de álcool transforma-a num ser tão exuberante quanto descontrolado…
Bernardo Bertolucci
Algumas sensibilidades contemporâneas verão num filme de tão ancestral dramaturgia uma indesculpável ofensa ao mundo feminino. Em boa verdade, creio que Edwards, autor do clássico Boneca de Luxo (1961), com Audrey Hepburn, sempre foi um militante adversário da estupidez machista. Mas não é essa a questão que aqui prevalece. Trata-se de perguntar como é que o cinema tem lidado com esta estranheza do corpo — e do seu potencial efeito sobre o corpo do outro — com que agora somos historicamente confrontados.
A questão é sexual, não tenhamos dúvidas, ao mesmo tempo que nos permite compreender que seria disparatado reduzi-la à sexualidade como região autónoma no mapa da nossa condição humana. A conjuntura do covid-19, desafiando o nosso sistema de relações mais íntimas — muito para lá da sexualidade, mas incluindo-a —, pertence a um tempo em que qualquer ideia libertária, eventualmente integrando um discurso de direita ou de esquerda, se afigura vazia, inoperante e, no limite, desligada da contundência da realidade circundante.
Stanley Kubrick
Talvez que O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, tenha sido uma espécie de derradeira cortina sobre esse teatro sexual da década de 60 em que, entre candura e tragédia, o sexo parecia confundir-se com uma colecção de êxtases desligados de qualquer conjuntura histórica. Aliás, na perturbação imensa em que o filme nos envolve, julgo que Bertolucci está a filmar menos um encontro homem/mulher e mais, muito mais, o desamparo do homem que descobre que o seu imaginário não abarca a singularidade da mulher que tem à sua frente. Mais do que um tema sexual, parece-me ser, através da sexualidade, uma confissão de desespero existencial tão admiravelmente encarnada no rosto e nos gestos de Marlon Brando.
Era, afinal, uma visão do mundo — e da sexualidade — sem vírus a contaminar tudo e todos. Do seu desencanto nasceu um outro cinema, arriscando lidar com o romantismo, já não como utopia, mas como fantasma. A sua apoteose estará no sublime De Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick, em que Tom Cruise e Nicole Kidman descobrem que a intimidade nasce, não da transparência, mas da estranheza do outro. Lembro-me também que Kubrick faleceu a 7 de março de 1999, seis dias depois de terminar a montagem do seu filme. E continuo a perguntar-me se já superámos a solidão que ele nos legou.