segunda-feira, março 02, 2020

Olivier Assayas
— as emoções estão nas palavras

Juliette Binoche e Guillaume Canet
Discípulo de alguns mestres clássicos do cinema francês, Olivier Assayas regressa com Vidas Duplas, um belo filme melodramático que tem o mundo dos livros como pano de fundo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Fevereiro).

É caso para dizer: quem sabe, sabe... Olivier Assayas (65 anos, nascido em Paris) há muito se afirmou como um caso exemplar de um cinema francês que sabe manter-se fiel às suas tradições, nomeadamente a essa capacidade dramática — e, sobretudo, melodramática — de encenar destinos aparentemente vulgares, acabando por expor as singularidades humanas das respectivas personagens. Assim volta a acontecer em Vidas Duplas, produção revelada no Festival de Veneza de 2018, agora lançada nos ecrãs portugueses.
Ciclicamente, Assayas tem tentado derivações, a meu ver não muito felizes, por exemplo nos terrenos do chamado “filme de época” (Destinos Sentimentais, 2000), ou em ambientes mais ou menos fantásticos ou fantasistas (Personal Shopper, 2016). No caso de Vidas Duplas, reencontramo-lo na dupla condição de argumentista e realizador, numa via mais conservadora, retomando o gosto “psicológico” que também marcava um título como Tempos de Verão (2008), a meu ver um dos melhores da sua filmografia.
Tudo acontece, então, num universo de casais, tendo por pano de fundo o mundo da edição de livros. Guillaume Canet e Juliette Binoche, ele editor, ela actriz, definem um par enredado em diversas formas de infidelidade; ao mesmo tempo, a actividade do editor faz com que um dos dramas culturais do nosso tempo — a coexistência das formas clássicas de impressão em papel com os novos suportes digitais — atravesse todas as situações, instalando a sensação melancólica de que assistimos ao fim de um universo específico de relações humanas e formas de trabalho.
Como sempre, Assayas revela-se um cineasta empenhado em valorizar o labor dos actores. E se é verdade que Canet e Binoche são exemplares de subtileza, ironia e auto-ironia, não é menos verdade que Vincent Macaigne, noutros casos enredado em estereótipos caricaturais, revela aqui uma subtil densidade emocional.
Aliás, pode dizer-se que Vidas Duplas é um filme em que a exposição das emoções passa sempre pela espantosa energia dos diálogos. Não estamos perante um cinema de efeitos especiais, confundindo a acção com o número explosões que vemos nas imagens... Nada disso: aqui, a acção está nas palavras e é absolutamente vertiginosa. E se é verdade que Assayas pode ser considerado um discípulo de autores franceses como Jean Renoir ou François Truffaut, não é menos verdade que, desta vez, é a herança de Eric Rohmer (um mestre da escrita de diálogos) que contamina a sua visão do mundo.