ANDRÉ BAZIN |
Os jornalistas da revista francesa "Cahiers du Cinéma” não se reconhecem nas directrizes editoriais dos novos accionistas; mais do que francês, este é um conflito envolve a defesa dos valores universais da cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Fevereiro), com o título 'O novo crepúsculo dos deuses'.
Tempos agitados na vida pública do cinema francês. Escrevo a quente, sob o efeito de um comunicado (divulgado ao fim da tarde de quinta-feira) em que os jornalistas da redacção dos “Cahiers du Cinéma”, chefiados por Stéphane Delorme, anunciam a sua saída da revista. Motivo: a aquisição da histórica publicação por um conjunto de accionistas que inclui oito produtores do cinema francês.
Aplicando o direito decorrente da chamada “cláusula de cessão”, os jornalistas reivindicam também a “cláusula de consciência que protege o direito do jornalista quando há uma mudança de proprietário de uma publicação.” A composição dos novos accionistas suscita-lhes “um problema imediato de conflito de interesses numa revista de crítica.” Consideram também que “a carta de independência anunciada pelos accionistas” tem sido contraditada por vários “anúncios brutais”, incluindo a nomeação de Julie Lethiphu, delegada geral da SRF (Sociedade de Realizadores de Filmes), para o cargo de directora geral da revista; para os jornalistas, tal nomeação reforça uma vontade de controlo que, segundo eles, se tem condensado na ideia segundo a qual a revista precisa de se “recentrar no cinema francês”.
Convenhamos que o contexto português não será o mais favorável para termos a percepção exacta do terramoto editorial e cinéfilo que estes factos podem representar. Conheço há décadas o obsceno poder do lugar-comum segundo o qual os “críticos” se limitam a “imitar” os “Cahiers du Cinéma”, tornando inoperante qualquer tentativa de explicar que, mesmo quando podemos divergir de opções inerentes à sua dinâmica editorial (é o meu caso), nada disso invalida o reconhecimento da revista como uma referência modelar, por vezes fascinante, na história do pensamento crítico sobre cinema.
Convenhamos que o contexto português não será o mais favorável para termos a percepção exacta do terramoto editorial e cinéfilo que estes factos podem representar. Conheço há décadas o obsceno poder do lugar-comum segundo o qual os “críticos” se limitam a “imitar” os “Cahiers du Cinéma”, tornando inoperante qualquer tentativa de explicar que, mesmo quando podemos divergir de opções inerentes à sua dinâmica editorial (é o meu caso), nada disso invalida o reconhecimento da revista como uma referência modelar, por vezes fascinante, na história do pensamento crítico sobre cinema.
O comunicado da redacção refere que foi dito aos jornalistas que a revista deve passar a ser “convivial” e “chique”. Tanto basta para que se tenha instalado uma profunda inquietação entre os profissionais dos “Cahiers du Cinéma”: o primarismo dos adjectivos ilustra valores (ou a falta deles) que reduzem a prática jornalística a uma acumulação de futilidades sem pensamento e o pensamento a um luxo que importa evitar.
Não por acaso, o comunicado recorda ainda que os “Cahiers du Cinéma” sempre se definiram por uma atitude de reflexão em torno da pluralidade da produção francesa. Há mesmo uma referência a um lendário artigo de François Truffaut (“Uma certa tendência do cinema francês”), publicado em 1954, criticando o conformismo temático e estético da produção francesa tradicional e, em boa verdade, lançando as bases ideológicas e simbólicas da Nouvelle Vague, por certo o movimento mais influente de toda a história do cinema e da cinefilia.
Tendo André Bazin (1918-1958) como figura tutelar, o primeiro número dos “Cahiers du Cinema” foi publicado em abril de 1951. Na capa (com o célebre fundo amarelo, que persistiria até outubro de 1964), surgia uma imagem de William Holden e Gloria Swanson no filme Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder.
E há qualquer coisa de inquietante e perverso na ponte simbólica que podemos estabelecer entre esse momento inicial e o rosto de Martin Scorsese na capa mais recente dos “Cahiers du Cinéma” (com data de fevereiro de 2020). Com o génio dos visionários, Wilder encenava a personagem trágica de Norma Desmond (Swanson), estrela fúnebre de uma paisagem primitiva de Hollywood em lenta decomposição. Agora, Scorsese é reconhecido como intransigente defensor de um cinema que não esvazie os valores clássicos da narrativa e, mais especificamente, não se perca nos artifícios pueris de super-heróis e respectivos efeitos especiais.
Nesta perspectiva, a crise editorial nos “Cahiers du Cinéma” é sintomática de uma crise mais global. Está em jogo a sobrevivência do cinema como matéria específica de expressão e pensamento, espectáculo e fruição. No limite, importa defender a dimensão universal da geografia do cinema, há dias menorizada por Donald Trump quando se insurgiu contra o facto de o Oscar de melhor filme do ano ter sido dado a uma produção da Coreia do Sul (Parasitas). Citou mesmo dois títulos que, segundo ele, valeria a pena voltar a ver: E Tudo o Vento Levou (1939) e, ironicamente, Crepúsculo dos Deuses… A sugestão é interessante mas, decididamente, não estamos a falar do mesmo.