Jim Carrey em The Truman Show (1998): ou como a "vida em directo" passou a ser um princípio central na nossa relação com as imagens |
A actualidade do filme The Truman Show é, de uma só vez, cristalina e perturbante: o modelo corrente dos “reality shows” tende a contaminar o modo como vemos e vivemos o mundo à nossa volta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Fevereiro), com o título 'A síndrome de Truman'.
Chegou às salas de cinema Sonic: o Filme, adaptação banal de um videojogo centrado na figurinha de um ouriço azul com poderes supersónicos. Em qualquer caso, assumindo o papel do Dr. Robotnik, arqui-inimigo de Sonic, nele podemos reencontrar esse actor genial que é Jim Carrey.
A pretexto do filme, numa entrevista ao Collider (site de cinema e televisão), Carrey comentou a possibilidade de voltar a interpretar alguma das suas personagens mais emblemáticas. Porventura contra as expectativas do entrevistador, não citou títulos como A Máscara (1994) ou Grinch (2000). Lembrando que se fizeram algumas sequelas sem ele, já que “não estava para aí virado”, citou uma possibilidade: The Truman Show, a produção de 1998, realizada por Peter Weir, em que interpreta Truman Burbank, um vendedor de seguros que descobre que a sua vida é toda ela forjada por um aparato de câmaras e figurantes — ele é, afinal, o incauto protagonista de um “reality show” transmitido para todo o mundo.
Carrey explicou a actualidade de The Truman Show através de palavras incisivas: “Creio que The Truman Show é algo que existe, agora, a nível microscópico. Era uma história que acontecia num nível global, mas agora todos assinam algum canal. Todos têm o seu pequeno mundo à maneira do Truman Show.”
Dir-se-ia que a dimensão de ficção científica que alguns apontaram ao filme de Weir parecia resumir as nossas angústias de fim de século. Agora, o aparato técnico e narrativo que o filme encena existe como modelo de consumo e consciência a que, de uma maneira ou de outra, todos somos impelidos. O subtítulo português do filme, A Vida em Directo, adquiriu mesmo um perverso suplemento semântico: mais do que observar a vida dos outros em directo, a nossa vida parece só adquirir informação, consistência e transcendência quando assistimos às imagens de um qualquer directo.
Patologia comunicacional? Podemos dizê-lo. Há pouco mais de uma década, os americanos Joel Gold e Ian Gold (irmãos, o primeiro psiquiatra, o segundo investigador de neurologia) cunharam a expressão “ilusão Truman Show”, ou “síndrome de Truman”: os respectivos pacientes tendem a imaginar-se personagens de uma grande encenação que não controlam, no limite entendendo tudo o que acontece como resultado de alguma manipulação de imagens. Há cerca de sete anos, num artigo sobre estas questões, publicado na revista The New Yorker (9 set. 2013), Andrew Marantz evocava alguns casos de jovens com boa formação escolar, tratados por Joel Gold no ano que se seguiu aos atentados de 11 de Setembro de 2001 — um desses jovens, suspeitando que se tratava de um golpe narrativo no “seu” programa de televisão, fez uma grande viagem para, em Manhattan, confirmar se as Torres Gémeas ainda estavam de pé.
Marantz tem o cuidado de lembrar o mais rudimentar: não se trata de apontar The Truman Show como “causador” do que quer que seja. Com toda a pertinência, recorda também que O Enviado da Manchúria (1962), notável filme de John Frankenheimer sobre um grupo de soldados americanos sujeitos a uma lavagem ao cérebro que os coloca ao serviço de uma conspiração comunista, não pode ser apontado como “motivo” da Guerra Fria. O que importa compreender é a transfiguração das nossas relações com as imagens.
Escusado será dizer que não é fácil pensar, desde logo descrever, essa transfiguração. Não é possível sair do mundo das imagens (e dos sons, já agora) para o observar como um objecto exterior — pertencemos à sua dinâmica e, no limite, vivemos as imagens como método, signo ou prova de conhecimento.
A certa altura, numa cena de The Truman Show, já depois de saber do dispositivo de encenação em que está inserido, Truman exprime o seu desespero, perguntando a Christof (Ed Harris) se, afinal, em tudo aquilo “não havia nada de real”. Christof responde: “Tu eras real. Era por isso que era tão bom olhar para ti.” A sua justificação é, afinal, o princípio sensual de uma nova ditadura do olhar: para além da tua imagem, não tens valor, talvez nem sequer existas.