Kristen Stewart |
Actriz americana consagrada pela Nova Vaga francesa, Jean Seberg surge agora interpretada por Kristen Stewart num filme evocativo do período em que foi objecto de apertada vigilância pelo FBI: o resultado é um filme fora de moda, de tocante verdade humana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Fevereiro), com o título 'Quem se lembra de Jean Seberg?'.
Saudemos um ovni cinematográfico. De facto, num tempo em que as gerações mais jovens são (des)educadas para pensar que o cinema começou quando os estúdios Marvel começaram a contratar técnicos de efeitos especiais, há um evidente risco comercial em produzir e difundir um filme como Seberg - Contra Todos os Inimigos, realizado por Benedict Andrews, sobre uma actriz tão esquecida como a americana Jean Seberg (1938-1979).
Afinal, quem se lembra de Jean Seberg? De forma breve, mas sugestiva, o começo do filme coloca-a no contexto em que nasceu a sua carreira, e também a sua mitologia. Descobrimo-la, assim, a interpretar Joana d’Arc, estreante, aos 19 anos, em Santa Joana (1957), sob a direcção de Otto Preminger. Depois, são evocadas outras referências fundamentais da sua filmografia, incluindo, claro, o filme-farol da Nova Vaga francesa: À Bout de Souffle/O Acossado (1959), de Jean-Luc Godard (citado pelo título inglês: Breathless).
Em qualquer caso, não estamos perante um banal inventário filmográfico: trata-se de expor as convulsões de uma personagem que, num misto de voluntarismo e ingenuidade, se envolveu na agitação política de um tempo dramático da sociedade norte-americana, em plenos anos 60, com a guerra do Vietname como perturbante pano de fundo.
No centro dos acontecimentos narrados pelo filme está o facto de Jean Seberg, na sequência das suas tomadas de posição em defesa dos direitos dos afro-americanos — e, em particular, do seu apoio ao partido Panteras Negras —, ter sido sistematicamente vigiada pelo FBI. Mais do que isso: a agência de investigação e segurança dos EUA difundiu informações no sentido de desacreditar a sua personalidade, facto que levaria mesmo o marido de Seberg, o escritor Roman Gary (interpretado no filme por Yvan Attal), a considerar que a acção do FBI terá sido um factor decisivo na eclosão dos muitos problemas psicológicos da actriz e, por fim, na sua morte prematura (provável suicídio, nunca esclarecido), contava 40 anos.
O filme, entenda-se, não é uma “tese” sobre esta colecção de factos (as referidas declarações de Gary nem sequer são citadas). Aquilo que lhe confere uma especial qualidade evocativa, a que talvez possamos chamar “psicológica”, é o facto de lançar pistas sobre esta complexa teia de personagens, sem santificar umas ou demonizar outras. Nesta perspectiva, o infeliz subtítulo português ('Contra Todos os Inimigos') ignora os contrastes afectivos e emocionais que são, em boa verdade, a matéria principal do filme, a ponto de personagens como o militante Hakim Jamal (Anthony Mackie) ou o investigador do FBI Jack Solomon (Jack O’Connell) serem tratadas muito para lá de qualquer cliché dramático ou ideológico.
Tudo isto passa, como é óbvio, pela composição de Kristen Stewart, assumindo a figura de Jean Seberg muito para lá de qualquer mimetismo simplista (mesmo se o cabelo curto ou o vestido às riscas de O Acossado são inevitáveis referências iconográficas). É também um labor de risco, já que se trata de encontrar uma verdade humana que ilumine a herança mitológica de Seberg, sem a remeter para uma abstracção sem espessura histórica. Enfim, são elementos que confirmam o estatuto de Seberg - Contra Todos os Inimigos como um peculiar objecto fora de moda.
JEAN SEBERG (1938 - 1979) |