Dumbo e os corvos: quais os limites figurativos a que deve obedecer um "elefante que voa"? |
Dumbo é um dos clássicos de Walt Disney que está a ser objecto de uma “reconversão” dos sentidos ideológicos das suas imagens. Quem promove tal reconversão são os próprios estúdios Disney — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Fevereiro).
A aceleração mediática em que vivemos criou uma nova retórica da catástrofe: tudo pode estar contaminado por alguma ameaça. De tal modo que nem mesmo a meteorologia se satisfaz com o anúncio de ventos fortes ou chuvas intensas — passou a haver “alertas” (amarelo, laranja, etc.).
Os acontecimentos noticiados podem ser, e muitas vezes são, perturbantes ou ameaçadores. Mas a linguagem dominante deixou de conceber a possibilidade de qualquer acalmia: se saímos de uma alerta é apenas porque outro está à beira de ser anunciado. Há mesmo quem, celebrando o mundo como permanente apocalipse, tenha substituído as notícias de “última hora” pela proliferação de alertas. Seja porque vem aí uma tempestade que vai alagar as nossas cidades, ou porque Jorge Jesus vai aparecer em directo, há sempre motivos para estarmos em estado de alerta.
A infantilização pelo alarmismo é uma velha prática dos políticos que se assumem com anjos da guarda das nossas imperfeições. No domínio das imagens, a sua vocação cumpre-se com obstinado espírito purificador: ciclicamente, há campanhas para tentar “normalizar” as imagens de “sexo & violência”, projecto tanto mais patético quanto tais imagens (interessantes ou não) lidam com temas e matérias que, por definição, contornam as certezas das normas.
Dito isto, convenhamos que não seria fácil estarmos preparados para receber o modo (“purificador”, precisamente) como o império Disney está a lidar com algumas das imagens mais célebres do seu imenso e fascinante património. São notícias da Disney+ (ou Disney Plus), a plataforma de “streaming” dos estúdios Disney já disponível nos EUA e Canadá, com lançamento anunciado para março em alguns países europeus e na Índia.
Assim, alguns títulos do vasto património legado por Walt Disney (1901-1966) e seus herdeiros artísticos estão a ser apresentados aos consumidores com um aviso profilático, tendo em conta, em particular, as formas de representação que neles se apontam como imagens de inspiração racista. Nos ecrãs dos assinantes, na entrada de filmes como Dumbo (1941), Peter Pan (1953), O Livro da Selva (1967) ou Os Aristogatos (1970), surgem estas palavras: “Este programa é apresentado tal como foi originalmente criado. Pode conter representações culturais que estão ultrapassadas [outdated]”.
Alguma imprensa americana tem dado especial destaque ao exemplo de Dumbo, mais concretamente à cena dos corvos que cantam, troçando do “elefante que voa”, mas, de facto, ajudando-o a levantar voo (chegou-se a especular que a Disney iria suprimir a cena, mas tal não se verificou). Associados a estereótipos de figuração dos afro-americanos, os corvos têm um líder chamado Jim Crow, nome que remete para as infames “Leis Jim Crow” que, no século XIX e princípios do século XX, estabeleceram e ajudaram a reforçar muitas formas de segregação racial.
Ninguém parece disponível para, pelo menos, admitir parar para pensar: talvez que a complexidade figurativa das personagens de Dumbo seja, no mínimo, ambivalente… Mas não é esse o meu ponto. Podemos até concluir que os corvos arrastam um discurso racista… Mas também não é esse o meu ponto. Mesmo que a nossa boa consciência democrática acabe por penalizar o filme, vale a pena formular uma pergunta: que tipo de efeito ideológico está a ser normalizado através de avisos como aquele com que são confrontados os consumidores da Disney+?
A meu ver, em muitos domínios da nossa vida social, estamos a assistir à metódica instalação de um dispositivo policial de indexação das imagens. Uma coisa é disponibilizar informação e pensamento para situar Dumbo no contexto histórico em que surgiu (é mesmo essa, curiosamente, uma das mais ancestrais tarefas da crítica de cinema). Outra coisa é criar um sistema de sinalização figurativa que carrega e sobrecarrega os filmes com um “sentido” antecipado, definitivo, exterior às próprias convulsões da história colectiva.
E o espectador? Porque não valorizar a possibilidade de o cidadão exercer a sua inteligência e assumir as suas responsabilidades face àquilo que está a ver? No limite, purificam-se os filmes para desreponsabilizar os espectadores — eis uma bizarra via de pedagogia democrática.