Terrence Malick, o cineasta de A Árvore da Vida, regressa com um filme admirável sobre a figura verídica de um objector de consciência que recusou combater no exército de Hitler: Uma Vida Escondida usa as coisas visíveis do cinema para falar do invisível — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Janeiro).
O mais recente filme do americano Terrence Malick, Uma Vida Escondida (finalmente nas salas portuguesas) esteve, em Maio do ano passado, na secção competitiva do Festival de Cannes. Genericamente, foi recebido com uma discreta falta de entusiasmo que vale a pena relembrar. Não está em causa a legitimidade dos contidos juízos de valor que suscitou; o certo é que tudo parecia resumir-se a um bizarro problema “conceptual”. Dito de outro modo: em relação aos filmes anteriores, Malick estaria demasiado “igual” ao seu próprio universo…
Não quero esconder ao leitor que o autor deste texto é um admirador convicto de Uma Vida Escondida. Nem sequer que tenho a noção clara de que isso me coloca numa região minoritária. Porque não? C’est la vie… E não é essa a questão.
Acontece que, com a passagem do tempo, a singularidade (temática, estética, etc.) de alguns cineastas, depois de ter sido incensada como apoteose da perfeição, tende a ser reconvertida num pecado sem remissão. Mais concretamente, tudo aquilo que, com A Árvore da Vida (2011), levou e elevou Malick aos píncaros de uma certa cinefilia — valendo-lhe, aliás, a Palma de Ouro de Cannes — parece ter-se transformado num perigoso “formalismo”.
Claro que há um “estilo” Malick. Em boa verdade, por vezes basta ver algumas dezenas de segundos de um dos seus filmes para pressentirmos, de imediato, a sua assinatura. A meu ver, uma das componentes essenciais do seu método (desenvolvida, precisamente, a partir de A Árvore da Vida) envolve uma estratégia de filmagem, a meio caminho entre o controle obsessivo e o improviso absoluto, que tem tanto de carnal como de sofisticação técnica.
Fundamenta-se tal estratégia num dispositivo de encenação do espaço e do tempo cuja marca mais óbvia será a utilização de grandes angulares: todos os gestos dos corpos, e as emoções que os atravessam, adquirem especial intensidade, sem que isso retire energia visual e poder simbólico aos cenários, sejam eles interiores ou exteriores, mobilados por mão humana ou paisagísticos.
Ora, tudo isso está em Uma Vida Escondida — a meu ver, até, com crescente depuração em relação a títulos anteriores como A Essência do Amor (2012), Cavaleiro de Copas (2015) e Música a Música (2017). Mas há uma diferença importante cuja importância narrativa, mesmo os mais reticentes, não poderão deixar de reconhecer: desta vez, Malick aborda uma personagem verídica, para mais situada nos cenários convulsivos da Segunda Guerra Mundial.
Franz Jägerstätter (1907-1943), interpretado pelo admirável August Diehl, foi um objector de consciência: austríaco, casado com Franziska (Valerie Pachner), vivendo do cultivo da terra, recusou integrar o exército de Adolf Hitler. Mais do que um processo de militância, a sua resistência, e também o seu desenlace trágico, é indissociável de uma postura eminentemente religiosa.
Tal dimensão religiosa constitui, talvez, o desconcertante “escândalo” de Uma Vida Escondida. E convenhamos que não é fácil falar disso sem correr o risco de atrair “rótulos”, porventura algo justificados, mas redutores em relação a tudo o que acontece no filme. A religiosidade de Uma Vida Escondida não é de culto, mas de princípio. Quero eu dizer que Malick não está a celebrar uma qualquer “filiação” religiosa, mas sim a filmar a dimensão sagrada da vida humana.
Lembremos, justamente, esse fascínio do sagrado como “coisa” enigmática e fascinante na história do grande cinema. De A Palavra (1955), de Carl Th. Dreyer, a Silêncio (2016), de Martin Scorsese, passando por Eu Vos Saúdo, Maria (1985), de Jean-Luc Godard, através de variadas e complexas visões do mundo, aquilo que está em jogo talvez se possa definir através de uma belíssima contradição estética: o cinema, arte da matéria, vocacionada para a reprodução do mundo visível, arrisca lidar com o invisível.
Uma Vida Escondida apresenta-se, assim, como o relato (de uma vida) que, através das muitas atribulações que conteve, nos remete sempre para qualquer coisa que se alimenta de algo — uma ideia, uma crença — que não pode ser reduzido a uma mera “descrição” ou “ilustração”. Afinal de contas, pense-se o que se pensar sobre Malick, importa lembrar que Jägerstätter viveu até às mais extremas consequências a sua recusa em pegar em armas — o filme acompanha-o, serenamente, no seu calvário.
Infelizmente, a futilidade cultural que atravessa os nossos tempos formatou todas as militâncias, desvalorizando, no caso do cinema, a classificação de “filme político”. Terá chegado, talvez, a altura de recuperar e revalorizar essa classificação.