Entre os principais títulos da produção de 2019, O Rei Leão ilustra uma concepção vanguardista no tratamento dos valores realistas. O certo é que a sua presença na temporada de prémios, incluindo os Oscars, é muito discreta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 janeiro), com o título 'Realismo digital'.
A história dos filmes é também, como todos sabemos, uma história económica e financeira. Porque fazer cinema é um trabalho que requer investimentos consideráveis e porque, inevitavelmente, o destino desses investimentos desemboca, de uma maneira ou de outra, na vida dos filmes nos mercados, a começar pelas salas escuras.
Quando consultamos os números globais das bilheteiras, referentes a 2019, ficamos a saber que os estúdios Disney conseguiram uma impressionante performance: 11,1 mil milhões de dólares de receitas em todo o mundo (contas redondas: 10 mil milhões de euros), obtidos graças a títulos como Os Vingadores: Endgame, O Rei Leão ou Toy Story 4.
O caso de O Rei Leão é tanto mais interessante quanto o seu impacto começa no chamado mercado americano (EUA + Canadá), mas também se pode medir através dos números de pequenos nichos, como é o caso do mercado português. Segundo os números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, coligidos desde a informatização das bilheteiras, em 2004, O Rei Leão bateu mesmo o recorde de frequência nas salas portuguesas: 1.280.860 espectadores, contra 1.207.749 de Avatar (2009).
Separemos as águas. O Rei Leão de 2019 (recentemente lançado em DVD e Blu-ray) poderia ter sido um aparatoso desastre financeiro, sem que isso lhe retirasse o mérito de, a meu ver, reinventar de forma brilhante a versão de desenhos animados lançada em 1994. E também não vejo como os milhões acumulados por Os Vingadores: Endgame possam superar a sua entediante colecção de lugares-comuns técnicos e narrativos, confirmando a preguiça criativa da maior parte das aventuras de super-heróis produzidas nos últimos anos (com chancela Marvel, Disney ou de qualquer outro estúdio).
Na temporada de prémios que irá ter o seu desenlace nos Oscars (9 Fevereiro), ninguém parece ter querido reconhecer, com a devida ênfase, tão grandes sucessos. Lembramo-nos, aliás, que o alargamento do número de possíveis nomeados para o Oscar de melhor filme do ano (para um máximo de dez, desde a cerimónia de 2010) foi justificado pela “necessidade” de não esgotar as escolhas nos valores “artísticos”, dando visibilidade aos líderes das bilheteiras… Onde está, então, O Rei Leão? Pois bem, surge nomeado para uma modesta categoria (melhores efeitos visuais), não integrando o lote de candidatos a melhor filme ou melhor filme de animação.
David W. Griffith |
No caso específico de O Rei Leão, realizado por Jon Favreau, creio que a sua relativa marginalização começou, perversamente, no desafio de linguagem que o filme acarreta. Isto porque o marketing o promoveu através de um processo técnico — a passagem da animação do filme de 1994 para os novos recursos da “imagem real” — que serviu de forma linear, sem qualquer distanciamento crítico, para muitas formas de abordagem jornalística.
Ora, na percepção do espectador, todas as imagens são “reais”. Porquê? Porque todas são recebidas através de uma experiência inserida numa determinada realidade (a sala escura, o ecrã do computador ou qualquer outro dispositivo). Acontece que as imagens digitais de O Rei Leão procuram um efeito realista — ou, se quiserem, uma impressão de realidade — que, pelo menos em termos tradicionais, não pertence ao domínio dos desenhos animados.
Nesta perspectiva, entre os produtos gerados pelo cinema ao longo do ano de 2019, O Rei Leão é, de facto, um objecto genuinamente vanguardista. Através dele, percebemos que os clássicos códigos de figuração realista estão a ser reconvertidos, porventura ultrapassados, pelo aparato tecnológico que o século XXI já consagrou. Renova-se, por isso, uma pergunta perturbante: o realismo de uma imagem decorre daquilo que reproduz ou das técnicas da sua fabricação?