quinta-feira, janeiro 02, 2020

A coisificação da cultura

O DESERTO VERMELHO (1964)
Como é que cada um de nós de relaciona com os filmes que descobre na Internet? Uma coisa é certa: a consolidação das plataformas de “streaming” é um acontecimento cultural marcante do ano que agora termina — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Dezembro), com o título 'Os filmes e as coisas'.

Godard

Um lugar-comum insidioso e, mais do que isso, muito poderoso faz crer que o “objectivo” do crítico de cinema é encontrar no outro (leitor, espectador, ouvinte) um ponto de vista que duplique o seu. Segundo esse lugar-comum, não seria possível conceber que o crítico, pensando, se interesse pelo pensamento do outro.
Inútil rebater tal lugar-comum através das formas do mais rudimentar racionalismo: a sua força passa pela rejeição implícita de qualquer hipótese racional. Ultimamente, com a generalização das formas de acesso aos filmes através da Internet — a consolidação das plataformas de “streaming” é, a meu ver, o principal acontecimento cultural de 2019 —, tenho deparado com um fenómeno de outra natureza, ainda que, a meu ver, igualmente penalizador da nossa relação com os filmes. Mais do que uma mudança de hábitos, corresponde àquilo a que darei o nome de desagregação do conceito de espectador.
Beckett
Refiro-me a quê? Pois bem, ao facto de no dia a dia social ser possível encontrar cada vez mais pessoas que, na sua qualidade de espectadores, celebram de modo abstracto determinado filme que descobriram na Internet. Porquê? Porque sim. Que filme é? Apenas um filme que encontraram disponível… Com que actores? De que realizador? Não importa: estava disponível. Qual o título? “Não me lembro.”
O que se discute não é a capacidade seja de quem for para lidar com um filme, muito menos a inteligência para o fazer. Nem sequer o facto de todos sermos consumidores (por exemplo, de filmes). O que está em causa é o esvaziamento de qualquer relação com o cinema gerado por este sistema de consumo acidental.
Não se trata de recuar meio século, menosprezando as muitas e fascinantes alternativas de acesso ao património cinematográfico de que passámos a dispor. A questão é de outra natureza: diz respeito à nossa identidade tecnológica, concretizada através das técnicas do próprio consumo. Recorro, por isso, às palavras do historiador, ensaísta e filósofo Theodore Roszak (1933-2011): “(…) quando o imperativo mecânico tiver sido interiorizado como o modo de vida dominante da nossa sociedade, descobrir-nos-emos no interior de um mundo de consumados burocratas, gestores, analistas e engenheiros sociais que não se distinguirão dos sistemas que gerem.”
São palavras do livro The Making of a Counter Culture, lançado há meio século, precisamente (entre nós editado, na altura, pelas Publicações Dom Quixote, com o título Para uma Contracultura). Para exemplificar esses “seres humanos mortos por dentro”, Roszak cita as personagens “sem paixão” que podemos encontrar em grandes filmes da época assinados por Jean-Luc Godard, François Truffaut, Michelangelo Antonioni e Federico Fellini, ou nas peças de Harold Pinter e Samuel Beckett.
Roszak
Será que podemos confundir o nosso presente com o misto de angústia e cepticismo que encerrou as convulsões dos “sixties” e que Roszak espelha com tão admirável precisão? Não creio. Nem é essa a questão. Acontece que o espectador acidental de cinema já não possui qualquer réstia de cinefilia. Para ele, tudo se equivale: os filmes não pertencem a uma história, não remetem para nenhum contexto, não envolvem a aplicação de linguagens específicas — são apenas acidentes intermutáveis de um fenómeno de anónima e continuada coisificação.
Assistimos, aliás, participamos assim de algo ainda mais insidioso do que o velho ódio ao pensamento e ao prazer de pensar. Decorre daquilo que, em 1969, Roszak caracterizava como “um mundo de relações humanas coisificadas”, de tal modo que “cada um se torna um espécime observado pelo microscópio do outro”. A solidão das personagens de Antonioni nas paisagens industriais do seu filme O Deserto Vermelho (1964) pode servir de ilustração de tal estado de coisas — no limite, “ninguém pode continuar a ter a certeza de que qualquer outro não possa ser um robot”.