sábado, dezembro 14, 2019

Açores, uma solidão, duas solidões

Maria Galhardo e João Cabral
A realizadora Rosa Coutinho Cabral foi aos Açores filmar as atribulações de um par à deriva: Coração Negro é o retrato de uma intimidade em crise, lembrando dramas e melodramas de outros tempos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Dezembro).

Ao descobrirmos um filme como Coração Negro, de Rosa Coutinho Cabral, talvez seja inevitável reconhecer que o seu ponto de partida remete para um modelo cenográfico e dramático que, ao longo das décadas, vimos muitas vezes aplicado. No cinema português, e não só. Dito de outro modo: este é o retrato de um par à deriva, tentando encontrar numa nova paisagem as razões (ou a falta delas) para preservar a sua relação.
Seja como for, vale a pena ir para lá daquilo que a convenção promete. Vale a pena, sobretudo, aceitar o jogo de enigmas e revelações que o filme propõe, afinal recusando dar-nos qualquer informação “psicológica” sobre o universo das duas personagens centrais. São, aliás, figuras sem nome: um “homem” e uma “mulher”, interpretados com obstinado e envolvente minimalismo, por João Cabral e Maria Galhardo.
Pouco ou nada sabemos do passado de um e outro. Ela chega à ilha do Pico, nos Açores. Ele já lá está e não a vai esperar ao autocarro. E o simples facto de não a ir esperar instala, desde logo, a sensação de que há uma ruptura que já vem de longe. Têm o projecto de consolidar a construção de uma casa, mas a sua história confunde-se com o retrato íntimo de uma solidão — aliás, duas solidões que quase não comunicam.
A austeridade formal do filme pode sugerir alguns curiosos paralelismos. Desde logo, no cinema português, com os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro, como Trás-os-Montes (1976), gerados em cenários naturais tocados por serenos assombramentos. Lembramo-nos também da geometria austera do universo de Michelangelo Antonioni, encenando em filmes como A Aventura (1960) ou Deserto Vermelho (1964) essa sensação bizarra de que a “vida moderna” empobreceu as nossas relações, não apenas no plano humano, mas também com os elementos das nossas paisagens.
Em qualquer caso, sejam quais forem as referências inspiradoras (não necessariamente as atrás citadas), importa sublinhar a secura dramática e, afinal, melodramática de um projecto que resiste, ponto por ponto, às facilidades “telenovelescas” de representação da intimidade. Tal resistência envolve a recusa de qualquer decorativismo “turístico” no tratamento dos espaços açoreanos: aqui, a paisagem é sempre interior. O resultado tem também qualquer coisa de minimalista, paradoxalmente intenso: trata-se de olhar o mundo à nossa volta e compreender que aquilo que nele vemos nasce sempre do labirinto instável das nossas certezas e incertezas.