Adaptando um conto de Branquinho da Fonseca, Edgar Pêra propõe uma visão que tem qualquer coisa de ficção científica: Caminhos Magnétykos é, afinal, um filme sobre a falsidade nas relações humanas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Outubro).
O novo filme de Edgar Pêra inspira-se em Caminhos Magnéticos, de Branquinho da Fonseca (1905-1974), um dos fundadores da revista Presença, além de figura fundamental na criação e desenvolvimento do Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. O cineasta intitulou-o Caminhos Magnétykos — assim mesmo, com assumidos “erros” de escrita. Porquê? Podemos lembrar que Edgar Pêra já explorou os mesmos “desvios” gráficos noutros momentos do seu trabalho. Mas o essencial decorre de outra dimensão. A saber: a afirmação da possibilidade de escrever/filmar o mundo à nossa volta sem obedecer à gramática oficial das narrativas audiovisuais.
Pode dizer-se que o essencial das peripécias da “história” foi preservado. Assim, também no filme se trata de contar a odisseia afectiva e o transe mental de um homem que, no dia do casamento da filha, é levado a repensar toda a sua existência e, em particular, o valor político do seu modo de ser e estar.
Desta vez, a acção passa-se num Portugal pós-25 de Abril cujo eventual realismo surge metodicamente dinamitado (por exemplo, em Lisboa, no rio Tejo, há uma Ponte... 25 de Novembro!) e o próprio anti-herói, de seu nome Raymond (Ramon no original), vem de França — é, aliás, interpretado pelo francês Dominique Pinon, figura “fetiche” do cinema de Jean-Pierre Jeunet.
Provavelmente, Caminhos Magnétykos, tal como, em boa verdade, toda a obra de Edgar Pêra, suscitará um pensamento hesitante: no seu delírio visual e sonoro, será que este é um cinema construído “contra” o espectador? No limite, creio que haverá tantas respostas possíveis quantos os espectadores. Seja como for, importa sublinhar o valor que decorre de tal interrogação: este é um cinema que não desiste de questionar cada indivíduo sobre o que significa, face a um ecrã, ser espectador.
Instrumento fundamental para tal “démarche” ética e estética é a sedutora ambivalência narrativa que percorre todo o filme. Com as suas imagens de cores densas (magnificamente trabalhadas pela direcção fotográfica de Jorge Quintela), Caminhos Magnétykos possui qualquer coisa de vertigem de ficção científica, sugerindo a iminência de algum evento apocalíptico; ao mesmo tempo, tudo isso acontece num espaço e num tempo que não podemos deixar de reconhecer como visceralmente portugueses.
Encontramos, assim, aguerridas caricaturas dos poderes político e económico que, em qualquer caso, não anulam a dimensão utópica que (ainda) move as personagens mais cândidas. Talvez seja esse o tema mais primitivo que contamina todas as experiências formais de Edgar Pêra: para lá da fealdade que parasita muitas relações humanas, talvez ainda haja uma réstea de inocência que podemos preservar. Onde? Na singeleza de alguns gestos, na verdade de alguns olhares. Acreditemos ou não nessa possibilidade, a sua formulação envolve um genuíno desejo de cinema.