Que imagens temos para lidar com a história do fascismo? E, quando a elas acedemos, como falamos sobre elas? Ou ainda: que formas de conhecimento os jovens portugueses aplicam para lidar com as memórias do Estado Novo? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Setembro).
Na nossa relação com a história do Estado Novo (1933-1974), temos assistido ao triunfo de uma perversa formatação ideológica. Os seus protagonistas são quase sempre pessoas jovens, por vezes adolescentes, e a sua tribuna mais frequente é de natureza televisiva: quando lhes é perguntado o que foi o fascismo português, a única coisa que sabem dizer é que foi um tempo em que nem sequer se podia estar na rua a falar com um amigo porque, de imediato, éramos assediados por algum polícia…
Que aconteceu para que seja “natural” reduzir as memórias do fascismo português a um novela protagonizada por uma multidão de cidadãos inertes, congelados numa pose de medo, tendo como personagens principais uma quadrilha de malfeitores? Como se instalou este processo de “naturalização” que recalca tudo o que é complexo, perturbante e difícil de pensar?
Hans-Jürgen Syberberg |
Sim, o Estado Novo foi uma ditadura, sustentando, entre outras coisas trágicas, uma guerra colonial que, para lá das mortes que gerou, deixou terríveis marcas traumáticas na minha geração (sem esquecer que foi a eclosão libertadora do 25 de Abril que evitou que muitos jovens, eu incluído, fossem para os cenários dessa guerra). Mas não faz qualquer sentido, é mesmo uma forma de pornografia histórica, reduzir a vida durante o Estado Novo a um torpor sem alternativa, a um ensimesmamento sem imaginação.
Penso, a propósito, na actual comemoração dos 50 anos do álbum Abbey Road, dos Beatles. E pergunto-me se algum dos jovens incautos que propaga tamanha ignorância sobre o nosso passado consegue imaginar uma pequena percentagem da vibração com que, em 1969/70, essa música foi celebrada. Será que algum desses jovens consegue ao menos pressentir a pluralidade de tal conjuntura? Sim, foi nesse país ferido por uma guerra sem sentido que vivemos a música dos Beatles através de irredutíveis emoções e pensamentos, na mesma época em que, num misto de fascínio e perturbação, descobríamos filmes como Easy Rider ou O Cowboy da Meia-Noite.
Pergunto-me se àqueles jovens faltam imagens para lidar com o passado dos seus pais e avós. E penso, em particular, na esquematização televisiva do 25 de Abril: quantos anos andámos “apenas" a ver fragmentos da multidão no Quartel do Carmo, como se o Portugal de 1974 se reduzisse a uma explosão de alegria sancionada por uma marcha militar?
As imagens poderão ser uma parte da superação de muitos desses lugares-comuns, mas não funcionam como panaceia para o que quer que seja — trata-se de saber de que imagens falamos e, sobretudo, que acontece através da sua concepção, montagem e difusão.
Lembro-me da lição de Hitler, Um Filme da Alemanha (a expressão “filme da Alemanha” faz parte do próprio título), realizado por Hans-Jürgen Syberberg em 1977. Com imagens tão emblemáticas como a de Hitler a “sair” do túmulo de Richard Wagner, o filme foi, na altura, atacado por vários sectores do pensamento alemão, considerando que o seu assumido artifício, enraizado no gosto da ópera, era uma forma abusiva de simplificar a história de Hitler. Syberberg teve o cuidado de explicar que não se tratava de “fazer história”, mas de encarar algo que envolve a história e os seus fantasmas. A saber: o seu filme é sobre “Hitler em nós”.
O filme seria mesmo distribuído nos EUA (por Francis Ford Coppola) com um título inerente ao projecto criativo de Syberberg: Our Hitler (à letra: “O nosso Hitler”). Trata-se de saber, enfim, como é que a história do fascismo está escrita, e inscrita, no tempo histórico da democracia. Supor que o passar dos anos dilui essa necessidade será o mesmo que considerar que ser jovem é uma condição social que legitima a propagação mediática de qualquer disparate.
>>> Artigo de Susan Sontag sobre Hitler, um Filme da Alemanha (1980).