Alexey Kravchenko, Vem e Vê (1985) |
O que é uma imagem realista? Eis uma questão que se renova, da pintura à fotografia, passando pelo cinema. O filme soviético Vem e Vê ajuda-nos a repensar a sua actualidade e também a perturbação que pode envolver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro).
Sou dos que pensam que a ideologia dominante do Big Brother televisivo nos obriga a um combate (ideológico, justamente) em defesa do realismo. Porquê? Porque na chamada “reality TV” assistimos a uma banal instrumentalização de pessoas e corpos, favorecendo um retrato do mundo como uma festiva obscenidade. O seu programa estético é este: quanto mais grosseiro, lascivo ou estúpido… mais realista!
Ora, defender o realismo não é o mesmo que defender aquilo que se representa, até porque podemos querer representar coisas, situações e personagens que são, precisamente, grosseiras, lascivas ou estúpidas. Porque não? Defender o realismo é defender a dignidade da imagem face àquilo ou aqueles que arrisca representar.
Devemos, aliás, usar o plural e falar de realismos. Isto porque cada configuração realista nos remete sempre para um contexto particular, envolvendo elementos que não admitem generalização. Exemplo esquemático: podemos classificar vários filmes recentes de Clint Eastwood como realistas (destaco o admirável Correio de Droga, lançado em 2018), mas não creio que isso nos leve a confundir os seus pressupostos, e também os respectivos efeitos, com o trabalho de Roberto Rossellini em Roma, Cidade Aberta (1945) e, de um modo geral, de todos os cineastas neo-realistas italianos.
Está nas salas portuguesas um filme que nos ajuda a repensar tudo isto. Tratando-se de uma produção de 1985, a sua actualidade simbólica não só se mantém como, de alguma maneira, parece ter-se reforçado: Vem e Vê, de Elem Klimov, muitas vezes citado como “o melhor filme de guerra de todos os tempos”, é uma das obras-primas absolutas dos anos finais do cinema soviético e, mais do que isso, um objecto radical no enfrentamento de uma pergunta tão terrível quanto necessária. A saber: como representar o horror da guerra?
O rosto do jovem Flyora (Alexey Kravchenko), espectador das atrocidades cometidas pelas tropas nazis na Bielorrúsia pode servir de símbolo exemplar dessa pulsão realista que nos toca através da verdade mais visceral que o cinema ou, pelo menos, alguns filmes sabem conter. Dir-se-ia que toda a encenação de Klimov passa por esse rosto: a imagem jovial do início (Kravchenko tinha 14 anos no começo da rodagem) vai sendo contaminada pelas marcas do medo, do desespero, enfim, do reconhecimento do Mal como componente inegável da dimensão humana.
Flyora envelhece. E ao rever o filme não pude deixar de pensar que, por isso mesmo, um dos seus elementos decisivos é a duração. Não falo necessariamente do facto de Vem e Vê durar quase duas horas e meia (143 minutos, para sermos exactos). Afinal de contas, há filmes de super-heróis que duram mais do que isso, deixando-nos apenas a sensação de que, para além do ruído dos efeitos especiais, nada aconteceu… Falo, isso sim, insisto, da duração. Não do tempo que podemos cronometrar, mas da duração como elemento emocional na construção e desenvolvimento de cada situação e, no limite, na nossa relação com cada imagem.
REMBRANDT — A Ronda da Noite (1642) |
Provavelmente, qualquer aproximação realista do mundo gera essa sensação, ao mesmo tempo métrica e sensual, de que a acção representada envolve alguma forma de duração que não pode ser menosprezada. Isso é válido, por exemplo, para o ritual militar representado em A Ronda da Noite, porventura o mais célebre quadro de Rembrandt, como poderá sê-lo para os míticos instantâneos de Henri Cartier-Bresson que consagraram a noção fotográfica de “instante decisivo”.
Ainda que contornando a possível discussão sobre as diferenças que tudo isso envolve, creio que não será abusivo considerar que Rembrandt e Cartier-Bresson (e também Klimov) conseguem fazer-nos sentir que há um “antes” e um “depois” de cada uma das suas imagens. Dito de outro modo: a pintura, a fotografia e o cinema convocam-nos para uma arte da duração através da qual se insinua a transparência, e também o mistério, do factor humano. Ao contrário do Big Brother que, descartando a sua responsabilidade social, reduz esse factor a um detalhe irrisório.
HENRI CARTIER-BRESSON — Joinville-le-Pont, perto de Paris (1938) |