domingo, setembro 15, 2019

"O Pintassilgo"
— uma belíssima aventura existencial

Hailey Wist e Oakes Fegley
Como adaptar ao cinema as mais de 800 páginas do romance O Pintassilgo, de Donna Tartt? O filme realizado por John Crowley mostra que é possível e, mais do que isso, celebrando as potencialidades narrativas e emocionais do próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Setembro).

Há uma espécie de tradição perversa que garante que quanto mais um romance é brilhante, mais desastrado será o filme que dele se possa extrair... Enfim, o simples bom senso ensina-nos que podemos encontrar os exemplos mais contrastados entre as atribuladas relações literatura/cinema. Mas é um facto que um romance como O Pintassilgo (2014), obra-prima da americana Donna Tartt (entre nós publicado pela Editorial Presença), parece colocar a fasquia ainda mais alta — dir-se-ia um livro “impossível” de transformar em filme...
Pois bem, o mínimo que se pode dizer do filme O Pintassilgo, assinado pelo irlandês John Crowley, é que há nele o rigor de uma visão cuja agilidade criativa começa numa metódica fidelidade à complexidade dramática, simbólica e estrutural do livro.
Haverá um fôlego épico na escrita de Donna Tartt (a extensão não é tudo, mas convém não esquecer que são mais de 800 páginas...) que dificilmente passa para uma duração cinematográfica de cerca de duas horas e meia. É verdade. Mas não é menos verdade que o notável argumento, assinado por Peter Straughan, por certo consciente desse problema, arrisca de forma contundente, inclusive modificando o regime temporal do romance, criando uma duração que é, em tudo e por tudo, especificamente cinematográfica.

[ Mauritshuis ]

A fascinante densidade dos factos narrados aconselha a que não se tente resumir as peripécias da vida de Theodore Becker, interpretado por Oakes Fegley e Ansel Elgort (respectivamente na adolescência e na idade adulta). Digamos apenas que O Pintassilgo a que se refere o título é um quadro da idade de ouro da pintura dos Países Baixos, da autoria de Carel Fabritius — Fabritius pintou-o em 1654, ano em que viria a morrer. Um dia, Becker está de visita a um museu que expõe o quadro, acabando por ser um dos visitantes atingido por uma violenta explosão terrorista... Tanto basta para que O Pintassilgo, a partir da memória obsessiva desses momentos (a explosão dá-se quando a mãe o inicia nas maravilhas do trabalho de Fabritius), seja a narrativa de um assombramento sem fim.
Em boa verdade, qualquer inventariação de peripécias passaria sempre ao lado de tão singular vibração emocional (do livro e do filme). Aquilo a que assistimos é, afinal, uma verdadeira saga de revelação da verdade mais íntima das pessoas e dos objectos. Até porque, quando olhamos com um mínimo de atenção para o quadro, verificamos que o pequeno pássaro, ao contrário do que a sua serena pose parece indiciar, não é um exemplo de felicidade — está preso por uma corrente metálica...
Dir-se-ia que a aventura existencial de Becker duplica, de forma fantasmática, tal condição. Com uma diferença fundamental (e fundamentalmente humana) todas as suas acções correspondem à demanda radical que quer saber a que grupo ou família pertence. Mais do que isso, trata-se de descobrir o que significa pertencer.
Há outra maneira de dizer isto: estamos perante um filme realmente diferente (nos tempos que correm, eu diria: corajoso) que não mostra complexos em reavivar os modelos clássicos de relação com a palavra literária e, mais do que isso, fazendo-o através dos meios (visuais, dramáticos, de duração e montagem) que distinguem o cinema como arte sem equivalente. Incluindo, claro, os actores: além dos dois protagonistas, registe-se ainda a presença modelar de nomes como Jeffrey Wright, Sarah Paulson ou Nicole Kidman.
Não será abusivo considerar que algum destes nomes poderá chegar às nomeações para os Oscars. Em qualquer caso, O Pintassilgo parece ter presença “obrigatória” em duas categorias: melhor argumento adaptado, da responsabilidade de Peter Straughan, já nomeado, em 2012, pela adaptação de John le Carré, para A Toupeira; melhor fotografia, assinada por Roger Deakins, génio da luz cinematográfica, premiado em 2018, por Blade Runner 2049. Seja como for, com ou sem prémios, estamos perante um belíssimo evento cinematográfico — e cinéfilo.