A Ganha-Pão conta em desenho animado a odisseia de uma menina a viver no Afeganistão dominado pelos Taliban; com chancela de um estúdio irlandês, constitui um bom exemplo de um registo de animação distante dos modelos dominantes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Setembro).
Eis uma história invulgar, tendo como personagem central uma menina de 11 anos, Parvana, habitante de Kabul, no Afeganistão, sob o domínio dos Taliban. As dificuldades da sua família são subitamente agravadas pelo facto de o pai, depois de uma altercação nas ruas, ser preso. Vivendo com a mãe, uma irmã mais velha e um irmão mais novo, Parvana assume a tarefa de comprar alimentos para a família, mas os Taliban perseguem qualquer figura feminina que não se faça acompanhar por um homem — até que decide cortar o cabelo e passar por rapaz…
O filme chama-se A Ganha-Pão e é ainda mais invulgar porque narra esta história dramática em… desenhos animados! Estamos, de facto, perante um trabalho com chancela dos estúdios de animação irlandeses Cartoon Salon, associados aos canadianos Guru Studio. A concretização do projecto, dirigido pela irlandesa Nora Twomey, acabou por resultar de uma co-produção internacional (envolvendo ainda o Luxemburgo e os EUA), com o apoio decisivo, na condição de produtora executiva, de Angelina Jolie. A actriz americana foi especialmente importante na aquisição dos direitos de adaptação do romance homónimo da canadiana Deborah Ellis, publicado no ano 2000.
Será talvez inevitável estabelecer algum paralelismo com A Valsa com Bashir (2008), filme israelita dirigido por Ari Folman. Também nesse caso a evocação de uma conjuntura tecida de muitas componentes trágicas — a guerra do Líbano, em 1982 — era tratada através da animação. Com uma diferença importante: o trabalho de Folman tinha como base um inquérito a veteranos da guerra (sendo o próprio realizador um desses veteranos), conservando, mesmo nos momentos mais surreais, uma lógica de documentário. No caso de A Ganha-Pão, a crueza de algumas situações nunca anula a respiração própria de uma fábula.
A saga de Parvana evolui num permanente ziguezague com o conto tradicional que a mãe vai contando ao irmão mais novo, centrado num rapaz compelido a enfrentar um elefante ameaçador… De forma discreta, mas eficaz, o filme cria algumas sugestivas diferenças figurativas entre a existência de Parvana e os cenários fantásticos do conto, transformando-se, afinal, numa parábola sobre a dificuldade de enfrentar a contundência do real.
Estamos perante um curioso exemplo de um registo de animação que se demarca dos modelos dominantes neste domínio, em particular os que provêm do universo Pixar/Disney (melhores ou piores, não é isso que está em causa). Regista-se, por isso, a importância simbólica desta estreia, mesmo não podendo deixar de referir o seu atraso: na verdade, A Ganha-Pão é uma produção revelada há dois anos no Festival de Toronto, tendo mesmo obtido uma nomeação para o Oscar de melhor longa-metragem de animação de 2017.