terça-feira, agosto 20, 2019

Tarantino — entre 1969 e 2019


Com o novo filme de Quentin Tarantino, Era uma Vez em Hollywood, reencontramos o poder primitivo da fábula: ao revisitarmos o ano de 1969, somos levados a perguntar o que significa, para o nosso presente, a própria noção de cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Agosto).

O domínio do mercado cinematográfico pelos super-heróis da Marvel e DC Comics tem conseguido levar muitos espectadores jovens a acreditar numa mentira obscena: no cinema americano só se fabricariam objectos escapistas, adequados ao consumo ruidoso de pipocas.
Talvez por isso, na Net, em alguns espaços da imprensa internacional, deparamos com uma visão caricatural do novo filme de Quentin Tarantino, Era uma Vez em Hollywood, e em particular das suas memórias de 1969. Estaríamos perante uma colecção de piadas sobre um tempo de comédias grosseiras e “westerns” decadentes — Leonardo DiCaprio interpreta um actor de séries televisivas de cowboys —, apesar de tudo celebrando a idade de ouro de Hollywood...
Idade de ouro? Em nome da mais básica objectividade, importa recordar que a acção de Era uma Vez em Hollywood se situa numa trágica “terra de ninguém” da indústria audiovisual da Califórnia. Em finais da década de 60, a decomposição das estruturas tradicionais dos grandes estúdios, a par da concorrência brutal da televisão, gerava um espaço de profunda angústia criativa em que tudo ameaçava decompor-se, mesmo se é verdade que, pelo paradoxo inerente a qualquer crise, tudo parecia possível.
Não é por acaso que Tarantino elabora a sua prodigiosa teia narrativa a partir da figura de Sharon Tate, interpretada com terno mimetismo por Margot Robbie. Assassinada nesse ano pela seita de Charles Manson, Tate ficou, afinal, como dramática encarnação de um impossível retorno aos padrões de representação e glamour das estrelas clássicas.
1969 é mesmo um momento emblemático de desagregação ideológica do “western”, género que, como bem sabemos, se confundia com uma mitologia redentora da própria nação — e não serão necessárias grandes demonstrações sociológicas para reconhecer que tal desagregação não pode ser dissociada do desenvolvimento da guerra do Vietname.
Foi o ano de A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, encenando a fronteira com o México como cenário da morte brutal, em sentido literal e figurado, dos padrões clássicos de heroísmo. Foi também o ano de Easy Rider, com Peter Fonda e Dennis Hopper, aventura “on the road” em que os novos cavaleiros, em motos reluzentes, deparavam com o vazio existencial que o próprio cartaz do filme identificava: “Um homem partiu à procura da América e não conseguiu encontrá-la em nenhum lugar...”
Simbólico entre todos os títulos de 1969, O Cowboy da Meia-Noite, de John Schlesinger, mimava um modelo tradicional de “western”, agora em gélidos cenários da grande metrópole nova-iorquina: Jon Voight é uma personagem anacrónica do mundo dos cowboys (vinha do Texas...) que, através do seu envolvimento com o vagabundo interpretado por Dustin Hoffman, descobre que o mito dera lugar aos rituais de uma teatralidade fúnebre.
Tarantino filma essa conjuntura com o carinho de um verdadeiro cinéfilo, capaz de reconhecer as contradições de um tempo em que, para o melhor e para o pior, se decidiu muito do futuro do cinema (porventura até aos dias de hoje). Através das muitas fachadas de salas que pontuam as imagens, surgem mesmo referências a títulos tão marginais e esquecidos como The Night They Raided Minsky’s, comédia muito amarga sobre os bastidores do teatro, assinada por William Friedkin (que quatro anos mais tarde realizaria O Exorcista); por involuntária, mas reveladora, ironia o seu título português foi Os Bons Velhos Tempos.
Nada disto envolve qualquer revivalismo. O cineasta de Pulp Fiction (1994) e Os Oito Odiados (2015) não reduz o passado a uma terra perdida nas brumas de uma nostalgia exangue. Daí que Era uma Vez em Hollywood envolva um tão especial desafio ao espectador: o regresso ao passado só adquire pleno sentido através da sua ambígua duplicação no presente. Será preciso sublinhar que a personagem de DiCaprio se distingue por uma imaculada amizade com o seu duplo (das cenas de acção), interpretado por Brad Pitt? O “era uma vez” do título significa isso mesmo: a fábula duplica a imaginação do presente. Se ainda tivermos imaginação e gosto de contar histórias.