Elton John, figura lendária do rock’n’roll, surge agora como personagem em destaque na actualidade cinematográfica. Rocketman é mais do que um tradicional filme biográfico: a celebração espectacular da música e das canções cruza-se com uma evocação muito directa dos anos de toxicodependência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Maio).
Elton John depois de Freddie Mercury? Na sequência do impacto internacional de Bohemian Rhapsody (2018), sobre o vocalista dos Queen, aí está um novo “musical biográfico”: revelado, extra-competição, no Festival de Cannes, Rocketman foi concebido como um retrato exuberante, de uma só vez dramático e festivo, do criador de canções lendárias como Crocodile Rock, Goodbye Yellow Brick Road ou, precisamente, Rocket Man (tema incluído no álbum Honky Château, editado em 1972).
O paralelismo parece reforçar-se se nos lembrarmos que o realizador de Rocketman, Dexter Fletcher, foi também responsável pela conclusão de Bohemian Rhapsody, depois das acusações de assédio sexual contra Bryan Singer terem implicado o seu afastamento da rodagem (por razões contratuais, o filme tem assinatura de Singer, surgindo Fletcher como produtor executivo). E convenhamos que não é difícil identificar em ambos os filmes o mesmo tratamento retórico das imagens e, em particular, o esquematismo da sua montagem: a subtileza não é, de facto, uma das virtudes de Fletcher e, não poucas vezes, Rocketman perde-se numa pompa algo postiça, de alguma maneira esbanjando a energia espectacular das próprias canções de Elton John.
Seja como for, Rocketman distingue-se por uma proximidade essencial com a sua figura central. E não apenas porque o nome de Elton John surge no genérico (curiosamente, também como produtor executivo). Fabricado 27 anos depois da morte do seu herói, Bohemian Rhapsody era uma biografia cruzada com a exaltação mitológica. No caso de Rocketman, trata-se de uma biografia autorizada e, de algum modo, desejada pelo próprio Elton John.
Acontece que, aos 72 anos (completados a 25 de Março), Reginald Kenneth Dwight — ou, se preferirem, Sir Elton John, entronizado cavaleiro pela Rainha Isabel II em 1998 — assume que, mais do que nunca, quer ter uma relação transparente e sincera com o seu passado. E já prometeu que o seu livro intitulado Me (lançamento a 15 de Outubro), além de se apresentar como “primeira e única auto-biografia oficial”, será uma “montanha russa” de emoções, até porque a sua escrita foi um “processo catártico”.
De catarse individual e histórica se poderá falar também a propósito da dramaturgia de Rocketman. É especialmente surpreendente o modo como são expostas as convulsões dos anos em que Elton John viveu dependente de drogas, tendo como permissa dramática, logo na cena de abertura, a sua integração num grupo terapêutico. Sem esquecer, claro, as muitas atribulações da sua cumplicidade (nunca quebrada!) com Bernie Taupin, interpretado por Jamie Bell, letrista da maioria das canções de Elton John.
Num artigo escrito para o jornal The Guardian (publicado a 26 de Maio), o próprio Elton John fez questão em sublinhar a serenidade da opção que o levou a aceitar a cândida representação de alguns elementos mais íntimos da sua existência: “Não quis um filme saturado de drogas e sexo mas, ao mesmo tempo, todos sabem que tive muito das duas coisas ao longo dos anos 70/80. Por isso, não fazia muito sentido fazer um filme que sugerisse que, depois de cada concerto, eu ia muito discretamente para o meu quarto de hotel tendo como companhia apenas um copo de leite e a Bíblia.”
Será que a crueza de algumas situações pode limitar o impacto comercial do filme? Também nesse domínio, Elton John não aceitou que a celebração do rock’n’roll pudesse servir para mascarar tudo o resto: “Alguns estúdios gostariam que o filme fosse mais discreto em relação a sexo e drogas de modo a ser exibido como PG-13 [classificação etária que, nos EUA, permite que os menores de 13 anos possam entrar, desde que acompanhados por um adulto]”. Mas a sua recusa foi clara: “Não vivi uma vida para menores de 13 anos.”
A aposta consistiu em fazer, não uma biografia “evocativa”, mas um filme todo ele pontuado pelos artifícios típicos de um musical, embora preservando um certo realismo psicológico. Fletcher definiu a ambição do projecto através de uma expressão sugestiva: tratou-se de criar uma “fantasia musical”. Aliás, um dos posters utilizados na promoção do filme ironiza a tradicional expressão “baseado numa história verídica”, apresentado Rocketman como “baseado numa fantasia verídica”.
É pena que, quase sempre, a passagem do domínio intimista para os delírios do espectáculo se faça através de esquemas de encenação que não superam as convenções correntes do mundo dos telediscos. Ainda assim, convenhamos que a interpretação da personagem de Elton John por Taron Egerton (revelação de 2014, em Kingsman: Serviços Secretos) envolve um fundamental desafio: é ele que interpreta as canções, num trabalho de “recriação” do timbre de Elton John que se revela, no mínimo, tecnicamente surpreendente (ao contrário de Rami Malek que surgiu num cruzamento de “playback” com a voz de Marc Matel, célebre imitador de Freddie Mercury).
É caso para perguntar se, no primeiro trimestre de 2020, tudo isto poderá valer ao filme — e, em particular, a Taron Egerton — uma presença de destaque na corrida aos Oscars de Hollywood. Evitando profecias de bolso, digamos apenas que a “biografia musical” parece estar na moda. Os super-heróis que se cuidem.