O autor de O Mundo a Seus Pés deixou um legado impressionante de desenhos e pinturas. O crítico irlandês Mark Cousins teve acesso ao seu espólio, com ele construindo um fascinante retrato que é também um belíssimo exercício cinéfilo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Junho).
Que bom saber que (ainda) há quem cultive um gosto do cinema que não cedeu à vertigem do marketing e, em particular, não esquece que os filmes têm uma história longa, complexa e fascinante. O crítico irlandês Mark Cousins, por exemplo, é um protagonista desse gosto, continuando o seu paciente trabalho de revisitação de filmes e cineastas. Assim acontece no magnífico Os Olhos de Orson Welles (que foi, em 2018, um dos grandes acontecimentos da secção de Clássicos do Festival de Cannes).
Orson Welles |
É provável que o leitor conheça a monumental História do Cinema: Uma Odisseia, obra de cerca de 15 horas em que Cousins retraça a evolução da criação cinematográfica, do período mudo às mais recentes convulsões tecnológicas (entre nós disponível em DVD, ed. Midas). Os Olhos de Orson Welles aplica uma estratégia semelhante. Trata-se de revisitar os marcos emblemáticos de um determinado universo — afinal de contas, Welles é autor de clássicos como O Mundo a Seus Pés (1941), A Sede do Mal (1958) ou O Processo (1962) —, ao mesmo tempo mostrando e demonstrando que, num certo sentido, continua tudo por descobrir.
Acontece que, graças à colaboração de Beatrice Welles, filha do cineasta, Cousins teve acesso a uma colecção imensa de desenhos e pinturas que Welles foi produzindo ao longo da sua vida profissional e, em boa verdade, privada. Do simples esboço a lápis aos tratamentos mais elaborados, Welles não só “antecipou” personagens, guarda-roupa e cenários dos seus filmes como foi criando imagens resultantes da observação dos lugares por onde passava e até mesmo dos espectáculos a que assistia.
O resultado é um belíssimo exercício cinéfilo. Dir-se-ia um documentário capaz de integrar as nuances de um ensaio crítico e as perplexidades de uma demanda filosófica. Isto porque, além do mais, Cousins organiza Os Olhos de Orson Welles, não como uma “descrição”, antes em forma de carta dirigida... ao próprio Welles: “Será que os teus esboços, caro Orson, revelam o teu inconsciente?”