Oscar por A Dama de Ferro (26 Fevereiro 2012) |
Recordista de nomeações nos Oscars de interpretação, com uma carreira de mais de meia centena de filmes, Meryl Streep é um caso invulgar de sofisticação e versatilidade. A sua contínua e multifacetada actividade mostra que as actrizes podem superar todos os estereótipos “juvenis” — este texto foi publicado no Diário de Notícias, a 22 de Junho, dia do 70º aniversário da actriz.
Mary Louise Streep nasceu a 22 de Junho de 1949, em Summit, pequena cidade do estado de New Jersey, 40 quilómetros a oeste de Nova Iorque. Neste dia em que celebra 70 anos, o seu nome artístico — Meryl Streep — reaparece como símbolo de uma veterania que se confunde com a mais depurada arte de representar face a uma câmara de filmar.
Não há nada de nostálgico em tal simbologia. Ao contrário de outras figuras da mesma geração (lembremos os nomes de Jessica Lange e Richard Gere, ambos também nascidos em 1949), Meryl Streep mantém uma actividade invulgar, plena de contrastes. Vimo-la, em finais de 2018, num pequeno papel em O Regresso de Mary Poppins. Já este ano integrou o elenco da segunda temporada da série televisiva Big Little Lies. Nos próximos meses, deverá surgir em dois títulos lançados para a temporada dos Oscars: Mulherzinhas, nova versão do romance de Louisa May Alcott assinada por Greta Gerwig, e The Laundromat, de Steven Soderbergh, um “thriller” inspirado nos Panama Papers sobre as relações perversas entre os meios políticos e o universo da alta finança.
A sua popularidade tornou-se, aliás, indissociável de uma espectacular presença na história dos Oscars, sendo detentora do recorde de nomeações no domínio da representação: foi 21 vezes candidata a um Oscar (actriz ou actriz secundária), seguida a considerável distância por Katharine Hepburn e Jack Nicholson, ambos nomeados para 12 estatuetas douradas. Em qualquer caso, Hepburn continua a ser a intérprete mais premiada de sempre, com quatro Oscars; Meryl Streep integra o grupo dos detentores de três Oscars, em que também está Nicholson, a par de Ingrid Bergman, Walter Brennan e Daniel Day-Lewis.
A consistência da sua carreira contrasta com os valores de uma cultura “juvenil” que, no plano cinematográfico, tem sido dominada pelos cada vez mais formatados filmes de super-heróis. Não por acaso, a própria Meryl Streep tornou-se militante de uma simples, mas essencial, ideia artística. A saber: a importância de criar condições para que as actrizes possam escolher personagens adequadas à sua idade.
Em 2012, numa cerimónia de prémios destinados a mulheres que se distinguiram nas artes e comunicação (Women in Film Crystal + Lucy Awards), sublinhou mesmo as potencialidades comerciais de histórias centradas em figuras femininas, destacando A Dama de Ferro (2011), filme em que a sua interpretação de Margaret Thatcher lhe valeu um Oscar de melhor actriz: “Custou 14 milhões de dólares e rendeu 114. Puro lucro!” (por essa altura, os estúdios Disney tinham lançado John Carter, superprodução cujos 284 milhões de receitas não foram, nem de longe nem de perto, suficientes para recuperar um investimento de 306 milhões, sem contar com os gastos de promoção).
Claro que há altos e baixos numa carreira tão variada, com mais de meia centena de longas-metragens — lembremos apenas o medíocre A Casa dos Espíritos (1993), adaptação de um romance de Isabel Allende em parte rodado em Portugal. O certo é que, para lá da serenidade com que assume a sua idade perante as câmaras, Meryl Streep tem sabido optar por projectos em que as personagens excedem os eventuais estereótipos que estão na sua origem. Um dos exemplos mais admiráveis será As Pontes de Madison County (1995), filme em que Clint Eastwood, actor e realizador, soube também provar que continua a ser possível recriar as leis do mais clássico registo melodramático.
A fulgurância com que se revelou na produção de Hollywood não terá sido alheia ao facto de ter começado algo “tardiamente” (como ela própria já reconheceu). Na verdade, a estreia aos 28 anos, em Júlia (1977), drama de guerra assinado pelo veterano Fred Zinnemann, com Vanessa Redgrave e Jane Fonda a liderar o elenco, aconteceu numa altura em que Meryl Streep tinha já uma significativa experiência de palco; em 1976, com uma peça de Tennessee Williams (27 Wagons Full of Cotton), obtivera mesmo uma nomeação para um prémio Tony.
Tal como outros nomes emblemáticos da história da representação no cinema americano, de Marlon Brando a Al Pacino, a sua sofisticação e versatilidade não pode ser desligada desse “know how” teatral que, directa ou indirectamente, se reflecte nas suas melhores performances. Depois de Júlia, 1978 foi um ano especialmente produtivo: surgiu em Holocausto, que viria a valer-lhe um Emmy (melhor actriz em mini-série), e integrou o elenco de O Caçador (1978), de Michael Cimino, contracenando com Robert De Niro e Christopher Walken, título central na abordagem das memórias traumáticas do Vietname (um ano antes de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola).
O Caçador valeu-lhe a primeira nomeação para um Oscar, como actriz secundária. Um ano depois, na mesma categoria, arrebatava a sua primeira estatueta dourada com Kramer Contra Kramer, drama familiar centrado num divórcio litigioso, com Dustin Hoffman no papel central e realização de Robert Benton. Foi uma época de absoluta consagração: ainda em 1979, participou em Manhattan, obra-prima de Woody Allen; em 1981, com A Amante do Tenente Francês, de Karel Reisz, conseguiu aquele que continua a ser um dos seus grandes papéis românticos; em 1983, obteve um Oscar (agora na categoria de melhor actriz) com A Escolha de Sofia, uma revisitação de memórias dilacerantes do Holocausto realizada por Alan J. Pakula a partir do romance homónimo de William Styron.
Tudo isto desembocou em África Minha (1985), de Sydney Pollack, contracenando com Robert Redford, subtil retrato romanesco da escritora dinamarquesa Karen Blixen e, por certo, o filme que a maioria dos espectadores associa, de imediato, à imagem gloriosa da actriz. África Minha obteve sete Oscars, incluindo o de melhor filme do ano, mas Meryl Streep, nomeada pela sexta vez, quarta para melhor actriz, não ganhou (o prémio foi para Geraldine Page, em Regresso a Bountiful).
Ironicamente, muitos desses espectadores desconhecerão outro título notável, Peões em Jogo (2007), em que voltou a trabalhar com Redford, neste caso na dupla qualidade de actor e realizador. Trata-se, de facto, de um dos maiores falhanços comerciais da carreira de ambos, e também de Tom Cruise, outro dos actores principais. Meryl Streep interpretava uma jornalista que questiona um político (Cruise) sobre o envolvimento militar americano no Afeganistão, num ziguezague dramático com a experiência de um professor universitário (Redford) que sustenta numa perturbante reflexão sobre a evolução política e moral dos EUA.
Em anos recentes, vimo-la a compor uma veterana do rock’n’roll, em Ricki e os Flash (2015), derradeira longa-metragem de Jonathan Demme [video], assumindo uma gloriosa e desastrada cantora lírica em Florence, Uma Diva Fora de Tom (2016), de Stephen Frears, ou ainda interpretando a proprietária do jornal The Washington Post, em The Post (2017), evocação da conjuntura política que desembocaria no escândalo Watergate, com assinatura de Steven Spielberg. São interpretações que ilustram a arte de representar como uma permanente tarefa de descoberta da complexidade das relações humanas — num tempo de endeusamento beato da tecnologia, esse labor continua a ser o mais belo dos efeitos especiais.