quarta-feira, junho 26, 2019

"Meninos" de Nápoles

O escritor Roberto Saviano volta a servir de inspiração à produção cinematográfica do seu país: Piranhas – Os Meninos da Camorra retrata o submundo do crime em Nápoles, revalorizando a tradição realista do cinema italiano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Junho).

O que de mais interessante acontece no mercado cinematográfico nem sempre está visível nos cartazes das nossas ruas ou nos spots promocionais que passam nas televisões. Um bom exemplo poderá ser um “pequeno” filme vindo de Itália que nos garante que o desejo de realismo continua vivo na pátria de Roberto Rossellini e Luchino Visconti: chama-se Piranhas – Os Meninos da Camorra e adapta um romance de Roberto Saviano (disponível entre nós como Os Meninos da Camorra, ed. Alfaguara, 2018).
A evocação de Gomorra (2008), de Matteo Garrone, é inevitável. Porque na sua origem está um outro livro de Saviano, mas também porque o pano de fundo é semelhante: tudo acontece em zonas degradadas de Nápoles, marcadas pela ordem imposta por famílias criminosas e, muitas vezes, por formas radicais de manipulação, agressão e violência.
Com uma diferença que está longe de ser secundária. Desta vez, as personagens centrais não são os líderes das famílias, mas sim os “meninos” que o título refere, adolescentes que se comportam como crianças à procura do divertimento mais interessante (alguns são mesmo crianças). Enredados no labirinto de um mundo em que as trocas e os favores, tanto quanto a fidelidade ou a traição, se medem pelo poder das armas, protagonizam um drama que se vai transfigurar em tragédia: para eles, a marginalização só pode ser superada através do aniquilamento do inimigo.
Claudio Giovannesi (41 anos, natural de Roma) realiza Piranhas – Os Meninos da Camorra com um misto de precisão e secura, evitando as possíveis facilidades de uma tese “sociológica” ou o peso redundante de qualquer fábula “moralizante”. A pulsão realista decorre, neste caso, de uma atenção obsessiva a todos os detalhes do quotidiano.
No limite, a encenação do grupo liderado por Nicola (Francesco Di Napoli, excelente actor) envolve o reconhecimento de que, na mente dos protagonistas, a escalada de violência se apresenta como uma alternativa “natural”. Para além do paralelismo com o trabalho de Garrone, Piranhas – Os Meninos da Camorra pode ser aproximado do universo de outros cineastas italianos contemporâneos como Mario Martone (Vítima e Carrasco, 1995, adaptado de Elena Ferrante) ou Daniele Luchetti (A Nossa Vida, 2010). Para todos eles, o realismo é também essa arte de enfrentar a perturbante complexidade do mundo à nossa volta.