sábado, junho 01, 2019

Laurie Anderson — entre real e virtual

Presente em Cannes com três instalações de Realidade Virtual, Laurie Anderson continua a ser uma criadora multifacetada, sempre com o gosto da experimentação — este texto resulta de um encontro da artista americana com vários jornalistas e foi publicado no Diário de Notícias (28 Maio).

O encontro ocorreu num dos restaurantes da praia de Cannes, num dos dias mais frios da 72ª edição do festival de cinema. A americana Laurie Anderson, lendária criadora de álbuns como Big Science (1982) ou Home of the Brave (1986) esteve na Côte d’Azur para, no âmbito da Quinzena dos Realizadores, apresentar Go Where You Look! (à letra: ‘Vai para onde estás a olhar!’), um conjunto de três instalações de Realidade Virtual concebidas com a participação de Hsin-Chien Huang, artista de Taiwan e, nos últimos anos, seu colaborador regular neste domínio.
Laurie Anderson começou por questionar os jornalistas presentes sobre as três instalações apresentadas, cada uma delas com uma duração de cerca de 15 minutos, em salas equipadas com óculos de Realidade Virtual (VR, na gíria internacional, anglo-saxónica). Todos responderam afirmativamente, o que motivou um desabafo risonho: “Devem estar exaustos! Esta é a primeira vez que apresentamos as três instalações no mesmo espaço. Parabéns por terem conseguido.”
“É realmente cansativo”, reconhece. “E pode ser estonteante, já que não se trata de assistir a um filme de 45 minutos — ao mesmo tempo, a pessoa está a criar.” Assim é, de facto. Com os óculos que a experiência exige (algo pesados e fazendo calor no rosto), o espectador é “projectado” num universo em que, de alguma maneira, vai intervir: graças a uns manípulos com botões de comando, vogamos no espaço virtual, mudando a posição de objectos, escolhendo direcções de deslocamento, aumentando ou diminuindo a velocidade do nosso “movimento”...


Uma das instalações, “Aloft” (a meu ver, a mais interessante), coloca-nos no interior de um avião em que somos o único passageiro; a certa altura, lentamente, o avião começa a desmembrar-se, até que ficamos a vogar no espaço, sem qualquer base ou parede em que nos apoiemos; começam a surgir objectos (um telemóvel, uma flor, uma máquina de escrever, uma bola de cristal, um exemplar de Crime e Castigo, etc.) que podemos “tocar”, trazendo-nos sons específicos e, quase sempre, a voz da própria Laurie Anderson... Em “Chalkroom”, penetramos numa espécie de gruta feita de gigantescas caixas em permanente transfiguração, enquanto “To the Moon” nos proporciona uma viagem até à... superfície lunar.
Surpreendentemente, um dos assistentes de Laurie Anderson descobriu a VR como um instrumento terapêutico. Assim, ela recorda que, nos últimos anos, vivendo limitado por uma condição física que o impede de abrir as mãos, ele voltou a movê-las ao experimentar a instalação “Aloft”: “Comecei a chorar, perguntado-me o que estava a acontecer. De facto, sabemos muito pouco sobre o modo como o cérebro e o corpo dialogam entre si. E não estou a falar de nenhuma cura milagrosa, já que, além do mais, depois dessa experiência, os seus problemas com as mãos se mantiveram.”
Em boa verdade, não se trata de filmes, mas não deixa de haver uma narrativa que evolui através daquilo que o “experimentador” vê e ouve, e também dos acontecimentos que vai provocando através dos seus manípulos. Daí a pergunta incontornável: será que Laurie Anderson e Hsin-Chien Huang partiram de algo a que se pudesse dar o nome de argumento? “Sem dúvida, escrevemos um argumento, mesmo naquelas coisas que não tinham propriamente princípio, meio e fim. De alguma maneira, tivemos que reaprender o que significa contar uma história. No limite, torna-se possível ir em qualquer sentido: quem vir, por exemplo, “Chalkroom” mais do que uma vez terá sempre experiências diferentes...”


Os trabalhos de Laurie Anderson não são estranhos à sua longa experiência nos domínios da música electrónica, aplicando, em particular, dispositivos de improvisação. O que, além do mais, ela encara com contagiante humor: “O improviso passa a fazer parte da narrativa e, afinal, a vida é assim mesmo. Ou seja: a vida não tem um argumento — a minha, pelo menos, não tem.”
Escusado será sublinhar que as dúvidas suscitadas pela VR são muitas. A sua montagem técnica é muito cara e a respectiva apresentação envolve sempre um número reduzido de pessoas. Em Cannes, cada uma das instalações só podia ser vista por três pessoas ao mesmo tempo. Recorde-se que, em 2017, o próprio festival foi pioneiro neste tipo de eventos, apresentando “Carne y Arena”, do mexicano Alejandro González Iñárritu (este ano presidente do júri que atribuíu a Palma de Ouro a Parasite, de Bong Joon-Ho).
Isto sem esquecer que o tipo de histórias que a VR pode contar envolve tanto de revelação como de primitivismo. Nesta perspectiva, Laurie Anderson apresenta-se como uma experimentadora que não renega o classicismo: “O sistema em que existe a arte tende a dizer-nos que isto ou aquilo tem um determinado significado... Por isso é muito interessante fazer coisas com esta margem de improvisação. No nosso trabalho, discutimos muito como relacionador essas duas componentes: história, contar uma história, e liberdade de interpretação. Claro que os grandes filmes sempre lidaram com isso. Todos os grandes trabalhos artísticos lidaram com isso. Nesse aspecto, não temos nada de único — é apenas tecnologia.”