domingo, junho 23, 2019

Ed Sheeran ou a prisão virtual

Cross Me é uma canção do inglês Ed Sheeran que irá integrar o seu quarto álbum de estúdio, No.6 Collaborations Project (lançamento a 12 Julho). O respectivo teledisco, assinado pelo americano Ryan Staake, constitui um esclarecedor exemplo, de uma só vez fascinante e frustrante, de uma cultura de redundante apropriação formal, hoje em dia dominante, que tem em Sheeran um dos seus símbolos mais reveladores.
Por um lado, esta é uma música festiva, nascida da síntese intelectual de "todas" as referências disponíveis em décadas de pop rock, quase sempre fundidas (e simplificadas) através de mecanismos de rap; por outro lado, o seu cruzamento com os mais modernos e sofisticados recursos tecnológicos participa ainda do mesmo impulso festivo, mas acontece através de um metódico esvaziamento temático que, ironicamente ou não, já se libertou até das mais angustiadas perversões niilistas.
Observe-se o surpreendente labor de Staake. Mais do que explorar, uma vez mais, as possibilidades da figuração virtual, o teledisco encena a sua própria produção, de acordo com uma lógica que conhecemos bem desde a modernidade cinematográfica, especialmente através dos mecanismos brechtianos retomados por vários autores das novas vagas (exemplo possível: Uma Mulher É uma Mulher, realizado por Jean-Luc Godard em 1961).
Ao mesmo tempo, semelhante labor decorre apenas da consciência (?) da duplicidade que se coloca em cena — é essa, aliás, a "moral" da sequência final, com a intérprete assombrada pelas imagens do próprio Sheeran. Estranhamente, todo esse dispositivo inverte a noção corrente segundo a qual os aparatos virtuais correspondem — e, de alguma maneira, induzem — uma radiosa liberdade criativa. Em boa verdade, Cross Me parece esgotar-se na descrição de um sistema de aprisionamento técnico e formal em que, porventura de modo incauto, os criadores se encerraram.