sábado, maio 04, 2019

Gus Van Sant no Japão

Matthew McConaughey e Ken Watanabe
Demorou, mas chegou: quatro anos depois da sua passagem no Festival de Cannes, aí está O Mar de Árvores, filme de Gus Van Sant centrado na viagem de um americano que escolhe uma floresta japonesa para se suicidar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Abril).

Há filmes que, de forma mais ou menos brutal, são excluídos da vida comum do cinema. São filmes que, por uma razão ou por outra, escapam aos códigos correntes do espectáculo cinematográfico, sendo por isso “castigados” com uma compulsiva marginalização. Esta semana, quatro anos depois da sua revelação no Festival de Cannes, chega ao mercado português um desses filmes: O Mar de Árvores (título original: The Sea of Trees), de Gus Van Sant.
Não se trata, entenda-se, de colocar a questão no plano banal da avaliação, opondo de forma pueril o “gosto muito” ao “não gosto nada” (se isso é importante para o leitor, acrescento, desde já, que pertenço ao primeiro desses grupos). Trata-se, isso sim, de constatar a dramática desvalorização do cinema como fenómeno vital, isto é, ligado às nossas vidas.
Assim, por todo o lado, desde os debates televisivos mais ou menos gritados à agitação impessoal da Internet, encontramos vozes a proclamar a urgência de uma revalorização da dimensão espiritual da vida humana. Pois bem, O Mar de Árvores não é sobre outra coisa.
Tudo começa com a chegada de Arthur (Matthew McConaughey) ao Japão, mais concretamente à floresta de Aokigahara na base do Monte Fuji. O seu projecto é linear: na sequência da morte da mulher, Joan (Naomi Watts), que iremos conhecer através de vários “flashbacks”, Arthur decidiu suicidar-se, escolhendo esse local lendário conhecido como a “floresta dos suicídios”. Na sua metódica viagem, Arthur irá ser acompanhado por um japonês, Takumi (Ken Watanabe), presente no mesmo cenário, com o mesmo objectivo...
O menos que se pode dizer desta tosca sinopse é que passa ao lado da pulsação vital (por oposição a mortal) do trabalho de Gus Van Sant. E escusado será sublinhar a importância figurativa dos elementos naturais. O cineasta de alguns notáveis filmes sobre adolescentes (Elefante, Paranoid Park, etc.) encena, aqui, uma sensação que, no limite, podemos reconhecer como elemento transversal de toda a sua obra. A saber: a impossibilidade de algum reencontro com uma pureza original, já que a Natureza não existe a não ser como componente instável e enigmática (ainda que “natural”) da dimensão humana.
Para além do enigma “policial” (Arthur irá ou não consumar o seu projecto suicida?), O Mar de Árvores expõe o intricado e intrigante enlace da vida humana com a irredutibilidade da morte. Por mais estranho que isso possa parecer, trata-se de um filme libertador, capaz de encontrar no labor da ficção energias (imagens e sons) para lidarmos com o silêncio indizível que pontua a vulnerabilidade humana.
O que, enfim, no contexto actual, não deixa de envolver uma cruel ironia. Observe-se como a pacatez de pensamento de Vingadores: Endgame tem servido (sobretudo nos espaços “juvenis” da Net) para patéticas discussões sobre os cruzamentos do Bem e do Mal, da Vida e da Morte. Curiosamente, Gus Van Sant não filma outra coisa... e “ninguém” lhe dá atenção. Por isso, mais do que nunca, está na ordem do dia a reconquista desse valor que o filósofo celebrou. A saber: a leveza do riso.