Cartaz de Tyler Stout, concebido para o 20º aniversário de Cães Danados |
Um quarto de século depois de Pulp Fiction, Quentin Tarantino vai ser, por certo, um dos nomes mais falados da 72ª edição do Festival de Cannes; entretanto, pelo caminho, fomos perdendo os nossos valores cinéfilos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Maio).
Quentin Tarantino parte para a 72ª edição do Festival de Cannes (14-25 Maio) com um curioso trunfo simbólico. Não uma “vantagem”, entenda-se — ninguém duvida da seriedade da competição do maior certame de cinema do mundo. Antes um suplemento mitológico que provém de uma rima que muitas notícias têm sublinhado.
Assim, o seu novo filme, Era uma Vez em Hollywood, evocando os bastidores da indústria cinematográfica da Califórnia no ano de 1969, será projectado na gigantesca sala Lumière do Palácio dos Festivais exactamente 25 anos depois de lá ter sido revelado o seu Pulp Fiction. Para vencer? Se a história se repetir, será a segunda Palma de Ouro para o cineasta americano que tinha sido descoberto, também em Cannes, dois anos antes, com Cães Danados.
Mas há um outro lado da questão. A saga “cannoise” de Tarantino é bem reveladora da progressiva decomposição do espaço cinéfilo. Entenda-se: do esvaziamento de um imaginário enraizado num gosto genuíno pelos filmes, pela capacidade de contarem histórias susceptíveis de desafiar as nossas crenças de espectadores e, no limite, as certezas da nossa ancestral humanidade.
Explico-me. Cães Danados passara em Cannes, em 1992, num ambiente de contraditória euforia. Por um lado, todos ou quase todos reconheceram o talento de um novo cineasta (Tarantino tinha 29 anos) capaz de convocar as matrizes clássicas, em particular do “thriller”, para construir uma narrativa de um fulgor visceralmente trágico. Ao mesmo tempo, por outro lado, circulava um misto de reticência estética e suspeita moral: não seria Cães Danados um filme “demasiado” violento?
O fenómeno repetiu-se com Pulp Fiction. Podemos agradecer a Clint Eastwood, presidente do júri oficial, a serenidade necessária e suficiente para reconhecer ao trabalho de Tarantino a energia de um verdadeiro criador: a Palma de Ouro de 1994 distinguiu um objecto capaz de celebrar o cinema como um processo de permanente reinvenção narrativa que não exclui, antes integra, um sistemático labor com as memórias de outros filmes — eis a definição mais básica de cinefilia.
A meu ver, o debate sobre o “excesso” de violência não passava da expressão de um ideologia pueril, alimentada por um profundo desconhecimento das especificidades das linguagens e, em particular, daquilo que faz uma imagem ser... uma imagem. Na base dessa ideologia está uma ideia grosseira: a de que as imagens não são entidades que integram a nossa relação com o mundo, mas apenas “objectos” automaticamente suspeitos, separáveis do resto desse mesmo mundo, que importa vigiar. Porquê? Porque não temos vontade nem pensamento e podemos ser impelidos a imitar o que nelas vemos.
Curiosa menorização da arte de ser espectador. Para tal perspectiva “purificadora”, é sempre suspeito o facto de um cineasta como Tarantino — no limite, qualquer artista — trabalhar sobre o negrume, por vezes vermelho como o sangue, que habita a nossa contraditória condição humana.
Paradoxalmente ou não, confesso a minha fraqueza. Tenho algumas saudades dos confrontos, mesmo os mais simplistas e improdutivos, gerados por filmes como Pulp Fiction. Existia uma rede social (nada a ver com o artifício da actual expressão “rede social”) de comunicações, encontros e diálogos em que se falava, realmente, de cinema. Agora, desde que uma qualquer produção da Marvel, distribuída pela Disney, consiga alguns milhões de dólares de receitas, o espaço social é automaticamente invadido por celebrações de tesouraria, prevalecendo a sensação bizarra de que os fãs dos super-heróis são todos accionistas de algum dos estúdios envolvidos.
O que assim acontece está muito para além da banal inventariação dos filmes como “melhores” ou “piores”. Estamos a assistir a uma desqualificação sistemática da própria vocação popular do cinema, substituída pelas celebrações virtuais de uma cultura imberbe que funciona em regime “clubista”: descobrir um filme passou a ser encarado como um ritual de fidelidade, mais ou menos ruidoso, a um universo pré-formatado. Nenhuma surpresa, apenas a gratificação menor de integrar um colectivo sem pátria.
Através da recusa de enfrentar a figuração trágica da violência (Tarantino, justamente, é um autor trágico), passando pela crescente infantilização do consumo do cinema, fomos alienando o gosto pela complexidade das imagens: fixamo-las, trocamo-las e apagamo-las através dos nossos telemóveis, cedendo à ilusão de que estamos a construir um admirável novo mundo visual.