quinta-feira, abril 04, 2019

O cinema sem cinefilia

Buster Keaton / THE CAMERAMAN (1928)
Para onde vai o mercado cinematográfico? Quando os filmes são tratados como acontecimentos nas chamadas redes sociais, será que ainda prevalecem alguns valores da clássica cinefilia? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Março).

As convulsões por que está a passar o mercado cinematográfico manifestam-se através dos sinais mais paradoxais, por vezes simplesmente absurdos. Por exemplo: passou a ser “normal” o lançamento em sala de uma dezena de filmes por semana (por vezes, mais). Tendo em conta que muitos dos títulos estreados estão apenas a cumprir um trajecto “obrigatório” para, com mais ou menos rapidez, surgirem na televisão por cabo, nos respectivos videoclubes ou nas plataformas de streaming, isso significa que o essencial do negócio passou a acontecer, precisamente, depois das salas.
Não adianta encarar tal transformação em termos moralistas. Há muito que todos nós (dos produtores de cinema aos consumidores, passando pelos jornalistas) sabemos da escalada dessa transformação, de uma só vez técnica e cultural. E se é verdade que passou a haver espectadores que julgam que ganharam alguma coisa por poderem ter a grandiosidade física de filmes como Lawrence da Arábia (1962) na triste pequenez do seu telemóvel, não é menos verdade que também não adianta transformar tais espectadores em bodes expiatórios seja do que for. No seu desconhecimento, eles são apenas peões incautos de um processo que pode vir a desembocar na morte da clássica cultura cinéfila.
Em certos momentos, parece haver alguns agentes do mercado de distribuição/exibição que acreditam (ou querem fazer acreditar) que tudo estaria melhor se os espaços jornalísticos dessem outra (isto é, mais) evidência aos seus produtos. A questão é sempre perversa, quanto mais não seja porque tais espaços são naturalmente (e salutarmente) diferentes. No caso particular da crítica de cinema, hoje, mais do que nunca, importa recordar uma antiquíssima verdade: a crítica não é um rebanho e está marcada por muitas clivagens, não poucas vezes decorrentes de modos de ver inconciliáveis.
O assunto tem tanto de complexo como de preocupante, aconselhando a não cedermos a quaisquer generalizações fáceis. No caso particular das relações dos referidos agentes do mercado com a comunicação social, importa referir uma mudança sensível. A saber: muitos desses agentes passaram a confundir essa comunicação social com as (chamadas) redes sociais — em sentido figurado ou não, mudaram a sua concepção de sociedade.
O esvaziamento da cinefilia acontece, assim, semana após semana, através de modos de difusão em que encontramos os mais inusitados valores promocionais: associações dos filmes a outros produtos de consumo, concursos com plataformas da Net, ante-estreias com “famosos” das telenovelas”, etc.
Não está em causa a legitimidade de as empresas trabalharem dessa maneira (muito menos se trata de daí deduzir qualquer forma de antipatia ou menor disponibilidade dos profissionais envolvidos). Trata-se apenas de formular uma cândida observação: muitas formas de promoção deixaram de se enraizar em valores cinéfilos, procurando antes o ruído efémero ou anedótico do novo “social”.
Do meu ponto de vista, certamente discutível, tenho sérias dúvidas sobre a capacidade de tal estratégia conseguir, a prazo, sustentar a viabilidade comercial das salas. E sou o primeiro a não esquecer que, felizmente, com maior ou menor visibilidade promocional, não nos faltam filmes magníficos, das mais diversas origens, para continuarmos a amar o cinema.