O mais recente filme do turco Nuri Bilge Ceylan encena o drama de um escritor confrontado com as transformações da sua terra natal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Março).
Cinema psicológico? Convenhamos que a expressão caiu em desuso. Mais do que isso: é muitas vezes aplicada com um tom de suspeita, remetendo para memórias de um academismo que não faria sentido nos tempos que correm.
Perante a estreia de A Pereira Brava, de Nuri Bilge Ceylan, vale a pena contrariar essa suspeição. Vale a pena, sobretudo, reabrir a possibilidade de nos envolvermos com um cinema que, de facto, procura compreender as determinações mais fundas (psicológicas, porque não?) dos humanos e as singularidades do seu comportamento. Afinal de contas, somos todos os dias bombardeados com a miséria dramática da “psicologia” das telenovelas e... ninguém diz nada.
Ceylan é, justamente, um narrador fascinado pelas contradições do ser humano. No seu cinema, entre o imediatismo dos gestos e os desejos que os habitam vai-se desenhando um labirinto de coisas ditas e outras tantas caladas que, em última instância, definem o movimento do colectivo familiar e, por fim, da própria sociedade. Por isso mesmo, sendo ele um retratista de dramas do seu país, a Turquia, as suas histórias possuem um fortíssimo apelo universal. Por alguma razão Ceylan é detentor de uma lista imensa de prémios internacionais, incluindo a Palma de Ouro do Festival de Cannes com o também belíssimo Sono de Inverno (2014).
A Pereira Brava centra-se numa clivagem psicológica clássica. A saber: Sinan (Dogu Demirkol) é um homem que, concluídos os estudos universitários, regressa à terra natal, deparando com um mundo que já não se rege pelas relações familiares e económicas que conheceu enquanto adolescente; além do mais, o seu regresso é, em parte, motivado pela tentativa de superar uma situação que está a bloquear o seu trabalho — tenta impor-se como escritor, mas faltam-lhe meios para editar um livro.
Dois elementos são decisivos no crescendo emocional do filme de Ceylan, sendo um deles indissociável da sua carreira (também) como fotógrafo. Encontramos, assim, essa capacidade de integrar os elementos paisagísticos — dos labirintos das casas às zonas campestres — como matérias vivas da própria dramaturgia. Nada a ver com a criação de “postais ilustrados”: Ceylan filma as paisagens como sinais subtis, por vezes perturbantes, das convulsões mais fundas dos humanos (e lembramo-nos, claro, de outros momentos exemplares da sua filmografia, incluindo o prodigioso Era uma Vez na Anatólia, lançado em 2011).
Ao mesmo tempo, tudo isso acontece através de uma incrível proliferação das palavras. Nesta perspectiva, A Pereira Brava será, muito provavelmente, o filme de Ceylan em que os diálogos, tão concisos quanto enigmáticos, mais funcionam como matéria de vertiginosa revelação (psicológica, porque não?). Para lá das muitas diferenças, podemos estabelecer um sugestivo paralelo com esse respeito pela densidade da fala que encontramos na obra do francês Eric Rohmer (O Joelho de Claire, A Minha Noite em Casa de Maud, etc.).
A Pereira Brava reflecte, afinal, a vontade de não deixar o cinema morrer na confusão pueril dos avanços tecnológicos e dos efeitos especiais. O que, entenda-se, não envolve qualquer menosprezo pelos mais requintados recursos técnicos. Rodado com a moderníssima câmara Osmo (4K de definição), produzida pela companhia chinesa DJI, o filme distingue-se por uma impressionante e sofisticada qualidade de imagem, pertencendo a direcção fotográfica a Gökhan Tiryaki (colaborador habitual de Ceylan). Não nos enganemos, por isso, quando vemos um super-herói a destruir arranha-céus no meio de uma grande confusão de luzes e ruídos... A verdadeira vanguarda criativa está nas emoções de filmes como A Pereira Brava.
>>> Foto de Nuri Bilge Ceylan: 'Fotografia antiga' (2007).