sábado, março 09, 2019

Para acabar com o cinema português

JÚLIO POMAR
Fernando Pessoa
1983
Para onde vai o cinema português? O contágio telenovelesco e a ausência de uma política global de produção são coordenadas de uma situação dramática — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Março).

Ver “todos” os filmes que são lançados no mercado nunca foi um princípio definidor de qualquer trabalho crítico. Por uma razão muito prática: não é possível. Nos últimos anos, tal impossibilidade foi-se transfigurando através de transformações que o próprio mercado tem imposto aos consumidores.
Dito de outro modo: a avalanche de estreias nas salas escuras (é rara a semana em que não há, pelo menos, uma dezena de novos títulos) passou a fazer parte de uma estratégia empresarial dominante que, mesmo não o confessando, privilegia a vida comercial dos filmes nas plataformas televisivas ou de “streaming”.
Por mais que tal possa chocar a mais clássica sensibilidade cinéfila (em que me reconheço), tudo isso decorre também do facto de haver filmes que nascem formatados pelas retóricas dominantes no espaço televisivo, visando, em última análise, a sua ocupação. Há-os de todas as origens. No meu caso, e nos últimos meses, tenho descoberto alguns sintomas portugueses desse estado de coisas, incluindo títulos como Perdidos (Sérgio Graciano, 2017) ou Bad Investigate (Luís Ismael, 2018).
São, a meu ver, péssimos filmes: intrigas anedóticas, direcção de actores à deriva, trabalho de imagem (e som) totalmente filiado nas rotinas telenovelescas. Ao contrário de um cliché demagógico que conheço há décadas, um juízo negativo sobre tais filmes não envolve quaisquer reticências sobre o direito a existirem. Por definição, o pensamento crítico não define, nem pode definir, uma política de produção. E mesmo que eu possa ter algumas ideias, certamente discutíveis, sobre possíveis fundamentos dessa produção, não é essa a questão central destas linhas.
Não se trata, ainda menos, de favorecer o deslizamento das estatísticas do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) para aquilo que seria a legitimação de uns filmes contra outros. Em termos estritamente pessoais, não serão os escassos 3259 espectadores portugueses de Cavalo Dinheiro (Pedro Costa, 2014) que me levarão a abdicar de o considerar um dos grandes filmes europeus produzidos neste século XXI.
Entenda-se: também não tenho qualquer empenho em negar o direito de quem quer que seja apostar em fazer filmes que secundarizam o pensamento artístico do próprio cinema, definindo como prioridade uma boa frequência nas salas portuguesas (digamos, acima dos 100 mil espectadores). Tais filmes poderão satisfazer, ou não, as ambições dos respectivos produtores e realizadores. Em qualquer caso, mesmo que exemplos como os dois títulos citados fossem esmagadores fenómenos de bilheteira, não vejo qualquer razão argumentativa (crítica, justamente) para os colocar a par de sucessos contemporâneos como Assim Nasce uma Estrela, Correio de Droga ou Green Book.
Que está, então, em jogo? Um fenómeno de esvaziamento criativo que se tem agravado nos últimos anos. A relativa facilidade com que os meios digitais permitem montar projectos de baixos orçamentos poderia ser uma via enriquecedora da diversidade de produção e da abertura a novas gerações (política que, a meu ver, o ICA deveria assumir em todas as suas consequências práticas, culturais e comerciais). O certo é que em casos como os citados aquilo que encontramos não passa de uma cumplicidade perversa entre a ausência de estratégias de produção e a colagem a modelos estereotipados que provêm das telenovelas ou das práticas mais medíocres de “stand up comedy” — em Portugal triunfou a ideia (?) segundo a qual fazer “stand up” é desbobinar anedotas obscenas narradas em tom mais ou menos anódino, sem qualquer trabalho de representação.
A actual discussão, eternamente renovada e renovável, em torno da constituição dos júris de selecção do ICA transformou-se mesmo no ponto de fuga de quase todos os debates no interior do cinema português. Em boa verdade, na origem mais remota (e, a meu ver, mais essencial) de tal discussão está um imenso vazio de reflexão sobre as prioridades das políticas culturais do país.
Daí o muito antigo logro que um texto como este pode, de modo incauto, reforçar. Não se trata, de facto, de polarizar na indigência conceptual de alguns filmes os problemas de fundo de um cinema português que, inconscientemente, parece ir gerando os vírus do seu próprio fim. Infelizmente, a questão é ainda mais dramática se nos lembrarmos que o futebol passou a ser o factor dominante de definição da nossa identidade cultural: tudo nos compele a sermos caracterizados como adeptos e, mais do que isso, militantes bélicos deste ou daquele clube; quase nada existe no sentido de nos definirmos e comportarmos como espectadores de cinema.