segunda-feira, março 04, 2019

China, século XXI

Jia Zhang-ke é um dos cineastas chineses que temos podido acompanhar no mercado português: o seu novo filme encena a relação amorosa de uma mulher com um chefe mafioso — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Março).

Jia Zhang-ke
Ensina a sabedoria tradicional que não devemos confundir a árvore com a floresta... Numa inversão mais ou menos perversa, podemos defender a ideia de que a visão global da floresta não esgota o conhecimento particular de cada árvore...
As metáforas nem sempre nos ajudam a esclarecer as ideias, sobretudo quando o que está em jogo é a gigantesca China, neste caso a nossa metafórica floresta. Todos sabemos, o assunto está mesmo na rotina dos noticiários, que a China vive um processo de vertiginoso crescimento que, segundo alguns observadores, visa a reconquista dos seus poderes imperiais, agora face aos EUA de Donald Trump (se o leitor se interessa pela complexidade que tudo isso envolver, recomendo vivamente o mais recente livro de Bernard-Henri Lévy, L’Empire et les Cinq Rois).
Enfim, é de cinema que falo e dessas árvores metafóricas que são os cidadãos chineses. Dito de outro modo: há alguns talentosos cineastas da China que, com paixão e método, continuam a interessar-se pelos homens e mulheres do seu país, encenando-os em histórias tocantes, quase sempre de grande vibração dramática.
Jia Zhang-ke, nascido em 1970 em Fenyang (província de Shanxi), é um desses cineastas e dos que, felizmente, tem estado bem representado no mercado português. O seu filme mais recente, As Cinzas Brancas Mais Puras (apresentado na competição de Cannes/2018), chegou agora às nossas salas.
Por bizarro preconceito (favorável ou desfavorável, em qualquer caso preconceito), supõem-se muitas vezes que as histórias cinematográficas chinesas são variações “obrigatórias” sobre a pompa e circunstância que está condensada em O Último Imperador, esse filme lendário de Bernardo Bertolucci consagrado nos Oscars de 1988. Belo filme, sem dúvida, aliás realizado por um... italiano. Mas não é essa a questão.
Observe-se As Cinzas Brancas Mais Puras. Que encontramos aqui? Antes do mais, uma intriga de amor e morte, protagonizada pela frágil Zhao Qiao (Zhao Tao, musa do realizador e também sua mulher na vida real) e esse homem inquietante que é Guo Bin (Liao Fan) — ele é um chefe mafioso, ela está apaixonada por ele. Num confronto urbano que ameaça descambar em extrema violência, ela dispara um tiro para o ar de modo a defender o seu amante... Acaba por ser detida, passa vários anos na prisão e regressa acreditando que pode refazer a sua relação...


Em boa verdade, estamos muito longe de qualquer visão mítica ou esotérica dos cenários chinesas: As Cinzas Brancas Mais Puras é um “thriller” de perturbante intensidade emocional, assombrado por uma permanente ameaça de morte. E se queremos sugerir algum paralelismo temático e estilístico, a primeira hipótese em que pensamos será, muito provavelmente, a do americano Quentin Tarantino.
Entenda-se: não precisamos de procurar referências para caucionar o trabalho de Jia Zhang-ke. Até porque os filmes que dele conhecemos nascem sempre de um profundo amor pelas gentes do seu país, a começar por Plataforma (2000), espantoso retrato das convulsões da Revolução Cutural maoísta vistas a partir da experiência de um grupo teatral que, num inusitado desafio (cultural!), se transfigura em banda rock.
Podemos mesmo dizer que o novo filme de Jia Zhang-ke se filia nessa grande tradição narrativa que é o melodrama, tradição que sempre ligou simbolicamente o Ocidente e o Oriente. Lembrando também o que tantas vezes se esquece ou simplifica: o espírito melodramático não nasce de qualquer exaltação abstracta do amor. Bem pelo contrário: tal como acontece em As Cinzas Brancas Mais Puras, é através do realismo mais cru que partimos à descoberta da possibilidade de o amor acontecer. Ou morrer.